31 maio, 2007

transmontanices

Para lá dos transmontanos silêncios
ela volta sempre
com as palavras puras,
afiadas na leveza majestosa
dos cumes.
Aladas, aliás.

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007

30 maio, 2007

segunda feira nos livros

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© Porto, 2007

"Não é nada de especial
isto de acreditar
não haver bem nem mal
saber ler e escrever
sem ter ido à escola
ao liceu ou às letras
na universidade
de tal."

um poema de Helga Moreira

29 maio, 2007

no caminho da publicidade

"Um fenómeno atmosférico de causas desconhecidas foi
detectado na nebulosa de Oríon, mas isto não afectará o
dia de praia perfeito para amanhã."

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© Porto, 2007

28 maio, 2007

só saberia mesmo viver se fosse no samba

enluarado de sonhos tontos.
os olhos numa alegria sem léxico.
o coração a chorar que nem uma viola.
a sanguínea voz a pedir
uma vida na corda bamba.
música de notas fáceis.
um a pedir doce esmola.
um sol a ir no pé do amor.

27 maio, 2007

o céu que se mexe

A minha filhota de três anos, entre as colheradas de
um delicioso caldo verde, junto à janela:
- Mãe, o céu está a mexer-se . Pra onde ele vai?
- São as nuvens que estão a mexer-se, filha. Parece que
estão a correr, não é?
- Elas andam com muita força e são pretas.
- Elas, se calhar, vão fazer chuva para o pé do mar.
- E porque não chovem aqui, eu gosto muito de chuva!
E logo remato eu, metediço e armado em poeta:
- O céu está a precisar de chorar...
- Ó pai, mas assim o mar vai ficar triste.
- Não, filha, a chuva é morninha e assim ele vai ficar mais
quentinho...
- Mãe, quando vamos prà praia? Eu quero muito ir prà praia.

26 maio, 2007

corações de busca

Literalmente alguém no mundo procurou no google a
eternidade.
Não sei porque ínvios caminhos mas foi levado até um nu
singular.
É como se os nossos corações ensimesmados já só acreditassem
em motores de busca.
E a rede fosse um céu de almas a penar.

25 maio, 2007

a verdadeira poesia

"Não tenhamos pontos de vista professorais sobre arte. Porque
é que Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, personagens muito
pouco recomendáveis do seu tempo, representam não obstante
tantas coisas para nós e são de alguma maneira benfeitores?
Não seguramente pela sua moral, mas por terem conferido um
novo impulso vital, uma nova consciência.
Por isso, em vez de os comparar a pregadores espalhando a
boa ou a má nova, há que compará-los ao primeiro homem que
inventou o fogo. Foi um bem, foi um mal? Não sei. Foi um novo
começo para a humanidade. Uma sucessão de novos começos
faz uma civilização. É isso também o que o poeta mais deseja,
um novo começo, uma vitória sobre a inércia, sobre a sua, so-
bre a da época, sobre o entorpecimento sem fim dos reaccio-
nários.
Vemos assim que a poesia, mais do que um ensinamento, mais
até do que um encantamento, uma sedução, é uma das formas
exorcizantes do pensamento. Pelo seu mecanismo de compen-
sação, liberta o homem da atmosfera viciada, deixa respirar
aquele que asfixiava. Transforma um estado de alma intolerável
noutro satisfatório. É, pois, social, mas de uma forma mais com-
plexa e indirecta do que se diz.
Sem o parecer, respondo desta maneira à pergunta: «Qual a
finalidade da poesia?» - A de nos tornar habitável o inabitável,
respirável o irrespirável."



Henri Michaux, excerto de um discurso pronunciado no
14º Congresso Internacional dos PEN Clubes, que teve lugar
em Buenos Aires em Setembro de 1936, intitulado "A Verda-
deira Poesia Faz-se Contra a Poesia" e incluído em "Nós Dois
Ainda", edição da "& etc" (Março 1988) com tradução de Rui
Caeiro. Fez ontem precisamente 108 anos que o autor nasceu
em Namur, na Bélgica.

24 maio, 2007

E se eu disser, de Ivan Junqueira

E se eu disser que te amo - assim, de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te enfara
ou te apraz o emprego de tais meios?
E se eu disser que sonho com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?
E se eu disser que à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti em vão persigo?
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência - essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata.

(retirado de "Poemas Reunidos", Editora Record, 1999)

«De sua poesia se pode dizer que é um edifício harmonioso,
pela sabedoria da construção, que une o concreto e o
etéreo. (...) Você me dá a impressão de ser um dos poetas
que mais têm consciência de seu ofício, num tempo em que
ela é rara.»
Carlos Drummond de Andrade

«Ivan Junqueira conseguiu um domínio realmente magnificente
na arte de fazer poemas, domínio que tem de ser louvado e
respeitado por todos os que neste país se interessam em ficar
a par do que deve ser culturalmente destacado entre as mais
importantes realizações de toda a poesia brasileira.»
Moacyr Félix




Ivan Junqueira vai estar hoje, pelas 18h30, na Fundação
Eugénio de Andrade, aqui no Porto, para falar da sua obra
e da actual poesia brasileira. Será também lançada, pelas
Edições Quasi, uma antologia da sua obra, "O Tempo Além
do Tempo", com organização e prefácio de Arnaldo Saraiva.
Ivan Junqueira nasceu no Rio de Janeiro em 3 de Novembro
de 1934. De 2004 a 2006 foi presidente da Academia
Brasileira de Letras. É também membro do PEN Clube do
Brasil e já recebeu inúmeros prémios literários.
Para além de poeta é crítico e tradutor de Eliot, Baudelaire,
Dylan Thomas, Borges entre outros.

23 maio, 2007

um quarto que era meu, #1

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007 (s/ reprodução de "Sitting Nude with Blue Headband"
de Egon Schiele)


coisas das paredes da minha juventude.
imagens que se levariam para uma ilha deserta.
imagens que me acompanham há muitos anos.
que perseguem. que fascinam.
que sempre me inflamam.
coisas de outros tempos.
coisas dos tempos das cartas.
das cartas derramadas para mulheres imaginárias.
vertidas por mulheres imagináveis.
mulheres tantas vezes imaginadas.
o mistério erótico como um deserto de fogo
lavrando na mais pura solidão.
o sagrado corpo feminino.
os sonhos inglórios e imberbes. as palavras feridas
de inconsciente desejo. as palavras loucas por pele.
sonhos com corpos de sonho.
costumar dizer que Schiele é o pintor preferido, mesmo
sabendo que se é algo idiota a lavrar frases assim.
sonhar com os cafés de Viena.
coisas sem explicação.

22 maio, 2007

as aves voaram das naves?

(aqui hoje, no dia do seu aniversário),
LIBERTAS QUAE, um poema de Moloi


Você morre e vai para dentro da nave
Mas não foi você quem escolheu a viagem
Só lhe diziam que a religião era perfeita
Você chegou a ser líder da comunidade
Não te disseram tudo, tudo é maior de idade.
Agora é tarde.

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007 (s/grafitos encontrados nos muros do Porto)

Parabéns, Paulo.

21 maio, 2007

musa dos murais

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
©1990


Parabéns, h.

19 maio, 2007

chuva de sol *

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007 (versos de um poema de Moloi, na tradução para
italiano feita pela sua mãe, Tiziana Bonazzola)


"(...) A sua deliberação anárquica e o golpe de mão pela
palavra reveladora e a ilustração festiva fazem dele um
evidente objecto pessoal. Se o leitor for facilmente es-
colar, não o procure. Leiam-no, sim, os que sabem do
vento que pode passar em janelas abertas da imaginação."

Dinis Machado
Lisboa, Outubro de 2001

"(...) Poderíamos considerar a arca de poÉ o fabulário
de uma nova época, de um novo milênio pandora de
surpresas."
Massao Ohno
São Paulo, Novembro de 2001

"(...) É na mais completa nudez que melhor se cumpre o
destino do homem. Secreto e generosamente assente na
pedra. Pilar. Montanha. Deserto. Na Arca de Poé nada é
jogado pelo acaso nem ao desbarato. Quase queima
tamanha frugalidade.Quase gela tamanho amplexo círculo
aberto em forma de oceano."

Isabel Mendes Ferreira
Lisboa, Abril de 2007

"um libreto de amor e não de panfletagem, porque cabe
ao leitor decidir e eu decidi que era de amor"

Feniana
Porto, Maio 2007


* Sim, que chova hoje sol (e perdoe-me, Ysa, estar a roubar-lhe
as palavras...) no relançamento deste livro singular do meu amigo
Paulo Luiz Barata, a arca de poÉ, pelas 16 horas, na livraria
Vício das Letras, em Santa Maria da Feira (Rua Dr. José Correia
de Sá, 59).
Na apresentação, será lido um texto belíssimo de Isabel Mendes
Ferreira (aqui acima parcialmente transcrito) e serão declamados
alguns poemas deste e talvez doutros livros por vir. O autor mos-
trará ainda 4 pequenos filmes seus e interpretará, com seu violão,
algumas canções também por si compostas.
Estão convidados.

18 maio, 2007

tudo está por vir

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007

17 maio, 2007

a existência

aqui deixo mais um poema de Moloi
retirado do seu livro "a arca de poÉ"


A existência é um falcão
sem paradeiro
Pousado num coração
luminoso

Assim queimo as ervas

E inscrevo no círculo de fumo

O absurdo de um
Senso comum

16 maio, 2007

noites primitivas

noites cálidas,
noites das luas todas.
vontade de tangos marados.
amores de vão-de-escada.
ciúmes malparados e rumbas chungas.
acordeões roufenhos e pianos de brincar.
boleros com salero ou fados malfadados, eu sei lá.
blues roucos como a mais louca alegria.
um canto obscuro para namorar.
meu tráfico de emoções insondáveis.
vontade abstracta de dança e lágrimas puras.
nostalgia do que não lembro ter vivido.
a vida sublimada em tão doidas músicas.

15 maio, 2007

tal como o sol

Herald Square,
um poema de J. M. Fonollosa
(tradução de Júlio Henriques)

O mundo governa-o a mulher
com um subtil radar e vibrações
e mandos à distância algumas vezes.

Tal como o Sol superintende os planetas
para que às suas órbitas se não escapem,
só um mínimo esforço para tanto operando,

basta-lhe consentir que curto instante
sua incisão ocupe um pedacinho
da carne apaixonada dos homens.

14 maio, 2007

a eternidade

"Um e um são depois; depois e um são sempre;
juntando sempre ao momento que passa tem-se
a eternidade."


Palavras de Maria Gabriela Llansol, retiradas de um dos seus
livros e que mantenho há já muitos anos anotadas num pequeno
caderno. A cada nova leitura aumentam o meu espanto, a admira-
ção, a devoção por tanta beleza e tão condensada sageza, por tão
forte e feliz formulação poética. Nunca me canso de lê-las. Nem
me importo com o quanto delas ainda não sei certamente enten-
der.


(por cortesia e agradecimento para consigo, querida Isabel, lá acabei
por resolver deixar o meu contributo em resposta ao seu desafio,
esta minha espécie de "meme"(*), mas como não tenho especial vo-
cação nem muita vontade para (cor)responder devidamente a estes
acontecimentos blogosféricos, por mim quebro aqui a corrente....)

(*) Um "meme" é um "gen ou gene cultural" que envolve algum conhe-
cimento que passas a outros contemporâneos ou a teus descendentes.
Os memes podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos,
capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que
possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autó-
noma. Simplificando: é um comentário, uma frase, uma ideia que rapi-
damente é propagada pela Web, usualmente por meio de blogues. O
neologismo "memes" foi criado por Richard Dawkins dada a sua se-
melhança fonética com o termo "genes".

12 maio, 2007

dois anos nu singular já é plural

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007 (s/ desenho de Armando Ferraz e palavras de Eugène Guillevic
cantadas por Jeanne Moreau)

11 maio, 2007

dormir sobre os sonhos dos outros

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007





10 maio, 2007

inarrável paisagem

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007

09 maio, 2007

minhas raras músicas



«Marshall McLuhan, What are you doing?

I'm a stickler for facts

A lot of history is mostly myth. Andy Warhol did not coin the
phrase "Fifteen minutes of fame"... Marshall McLuhan did, Kennedy
was not the youngest president, and Allan Fried did not coin the
term "rock'n roll".

You could call this album "Alternative schlock". Rock'n roll, jazz,
blues... you call it all those things, but for your enjoyment, I like
to call it "discom-bop-ulated jive".
So enjoy...

If you ask me why I recorded this album and I would tell you
"because it was the wrong thing to do".»

Chuck E. Weiss

08 maio, 2007

a luz da pena

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007

07 maio, 2007

as sombras

as sombras
negras fugas
dos meus gestos

as sombras
pedras rugas
os meus restos

as sombras
cegas vagas
trânsfugas de ecos

as sombras
hidras feridas
cavalos da morte

as sombras
hirtos silêncios
gélidos gemidos

as sombras
deuses sem sorte
almas sem fim

as sombras
esperança obscura
nenhures de mim

05 maio, 2007

coisa de sábados




"Encomenda",
um poema de Joaquim Castro Caldas


sábado é limpinho
visto-me para chegar atrasado
a um enterro ao domingo
por causa de um amigo
que me pergunta
o que é que fazes hoje

olha hoje preparo-me
para um engarrafamento
na próxima sexta ao fim da tarde
quero ver se não perco

só então já tontinho
rompo essa selva vilã
de gorilas que separam
o povinho do clã
e de chuveiro em punho
pergunto às avarias
como é que vão as coisas
lá pelo mundo
logo de manhã

e a menina do outro lado
responde que não é preciso
a gente sair do quentinho
e que já nos trazem a casa
à noite o mundo

04 maio, 2007

anjo sobre o Porto


Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007

"É um mundo muito pouco transparente. Dantes conseguíamos ler
nas entrelinhas das coisas, agora não: as guerras por detrás desta
guerra são difíceis de perceber. Não sabemos exactamente quem
puxa os cordelinhos deste teatro de marionetas."

(Ute Lemper, excerto da entrevista de Inês Nadais no Ípsilon de hoje)

03 maio, 2007

raízes nas mãos

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© Porto, 2007


"ENTRE HOJE E AMANHÃ",
um poema de António Ramos Rosa


Somos quantos? Uns e outros
construímos signos nos ventos
As nossas casas comunicam ao nível dos alicerces
A imaginação tem raízes nas mãos
A alegria que por vezes nasce como uma lufada
conhece todas as ranhuras do muro

Os nossos sonhos brilham nas valetas

01 maio, 2007

havia de ser dia da reflexão, V

O caminho é perigoso
E não me venham dizer
Que o estado do universo
É formoso ou foi fermoso
Deus tropeçou num quanta

De sua própria criação
Lúcifer aproveitou-se da queda
O povo quer ascensão.

poema de Moloi

havia de ser dia da reflexão, IV

«Isto está insuportável. A nossa sociedade está irracional, barba-
rizada, desumanizada. E isto é o nosso olhar de intelectuais. Mas
depois começamos a pensar nas pessoas que estão mesmo mal,
naqueles olhares que vemos no telejornal, aqueles que ao fim de
trinta ou quarenta anos de trabalho vão para casa sem nada,
apenas com um casaco nas mãos.»

José Mário Branco, excerto da entrevista de Nuno Pacheco,
suplemento Ípsilon do "Público", 27/Abril/07

havia de ser dia da reflexão, III

«A maior conquista é continuar a ter tempo. Aquilo que o homem
mais pode querer é ter tempo. É estar quieto sem fazer nada,
não é o ócio pelo ócio. Na criação, tem de se ir ao ponto zero.
O nosso interior está cheio de coisas. Só precisamos de ter tempo
para o descobrir.»

João Mota, encenador e fundador da Comuna; excerto da entre-
vista de Cristina Margato, "Expresso", 21/Abril/07

havia de ser dia da reflexão, II

«(...) O avanço do que se chamava - e se chama ainda - civiliza-
ção significava a destruição do indígena, quer pelos meios já re-
feridos quer pela catequese que, feita com a melhor das inten-
ções, mas com a mais cerrada ignorância da antropologia cultural,
fazia desabar o edifício de valores em que se albergava o índio,
sem lhe dar outro compatível com seus hábitos, a sua psicologia,
as suas aspirações, e o punha presa fácil da apatia mental, de um
desânimo que facilmente passava a biológico: sem alvo para a
vida, o índio morria de tristeza, como hoje morrem de tristeza
os povos altamente desenvolvidos e industrializados: quem se
priva de tempo e sonho nada mais tem a fazer do que marcar
a data do enterro.
Só veio a situação a modificar-se com a vida magnífica que foi a
do marechal Cândido Rondon, de ascendência indígena, que tive-
ra no interior a visão de um Brasil autêntico que poderia ser, co-
mo na intuição dos portugueses antigos, como que um Paraíso
terrestre,e aprendera no Rio de Janeiro, em todo o seu período
de formação militar e dentro dos princípios positivistas que fi-
zeram a República brasileira, tudo o que havia a tomar e tudo o
que havia a repelir na civilização industrial. O que havia que to-
mar era tudo o que podia podia libertar o homem das tarefas que
diminuem o espírito, exactamente como os aventureiros das ban-
deiras tinham levado ao índio o anzol, a tesoura e o facão, ou o
que ao espírito dá segurança, como as práticas de mapa com que
os portugueses tinham ajudado a firmar-se uma elementar mas
bastante correcta cartografia índia. O que havia a repelir era a
submissão à máquina, a invasão das horas de ócio, do sagra-
do do diálogo do homem consigo mesmo: coisa em que, nos
primeiros tempos, colabora muito a preguiça indígena com a
preguiça lusitana: ao homem que afinal descobrira o mundo
badalando a perna sobre a borda do barco oferecia o tupi o
balanço na rede e a doce embriaguêz do fumo.»


de Agostinho da Silva, excerto de «Sobre índios e suecos», Vida
Mundial, nº1644, 30 de Abril de 1971 (sublinhados meus).

havia de ser dia da reflexão, I

«Se, arrancando do coração o vício que a domina e avilta a sua
natureza, a classe operária se levantasse com a sua força terrí-

vel, não para reclamar os Direitos do Homem, que não sendo
senão os direitos da exploração capitalista, não para reclamar o
Direito ao Trabalho, que não é senão o direito à miséria, mas
para forjar uma lei de bronze, que proíba que qualquer homem
trabalhe mais de três horas por dia, a Terra, a velha Terra,
fremente de alegria, sentiria nascer dentro de si um novo
universo... Mas como pedir a um proletariado corrompido pela
moral capitalista uma resolução viril?
Tal como Cristo, dolente personificação da escravatura antiga, os
homens e as mulheres do Proletariado sofrem penosamente, des-

de há um século, o duro calvário da dor: desde há um século, o
trabalho forçado parte-lhe os ossos, mortifica-lhes a carne, arra-
sa-lhes os nervos; desde há um século, a fome contorce-lhes as
entranhas e alucina-lhes a cabeça!... Ó Preguiça, tem piedade da
nossa longa miséria! Ó Preguiça, mãe das artes e das nobres virtu-
des, sê bálsamo para as angústias humanas!»

Palavras escritas não em 2003, nem em 1983 mas sim nos longín-
quos finados do século XIX, mais precisamente em 1883. Não me
canso de trazer aqui à liça o seminal "O Direito à Preguiça" do mais
que presciente Paul Lafargue.