31 julho, 2007

página dezassete

"Agora a mulher não tem tempo sequer para baixar os olhos. O
director não concorda que ela vá à cozinha para executar qualquer
coisa. Agarra-a decididamente pelo braço. Em primeiro lugar quer
ocupar-se com ela e, para isso, cancelou dois encontros. A mulher
abre a boca para recusar. Ela pensa na força dele e volta a fechar a
boca. Este homem iria também tocar a sua melodia no seio de ro-
chedos, ecoando, iriam o violino e o membro. Esta canção salta
constantemente, este som que estala, que é de tal maneira espan-
tosamente terrível, acompanhado de olhares involuntários. Esta
mulher não tem a coragem de se recusar, passeia indefesa. O ho-
mem está sempre pronto e congratula-se consigo próprio. O dia ale-
gre tanto é concedido aos pobres como aos ricos, mas infelizmente
os pobres invejam-no aos ricos. A mulher ri cheia de nervos, quando
o homem, ainda com o sobretudo vestido, se desnuda em determina-
do sítio, em frente dela. Ele não se desestupidifica, deixando ficar
assim a piça. A mulher ri-se mais alto e, aterrorizada, bate com a
mão na boca. Ameaçam-na de pancada. Ainda ecoa a música do
gira-discos, onde volteiam os sentimentos dela e os de outras
pessoas na figura de João Sebastião Bach, que é realmente ade-
quado para o prazer humano. O homem entretanto ergue-se no
meio dos seus espinhos de pêlo e de calor. Assim se aumentam
os homens e as suas obras, que no entanto em breve cairão atrás
deles. Mais firmes estão as árvores nas florestas. O director fala
calmamente da cona e de como irá rasgá-la imediatamente. Está
como que embriagado. As suas palavras balanceiam em redor.
Agarra a mulher com a mão esquerda pela anca com firmeza e
tira-lhe pela cabeça o fato prático, se chegar a tanto. Ela deba-
te-se diante do seu peso. Ele zanga-se em voz alta por causa dos
collants, que há muito lhe tinha proibido de usar. As meias são
mais femininas e dão mais uso aos buracos, quando não criam
mesmo outros. Ele anuncia que vai desfrutar a mulher a partir de
agora, pelo menos duas vezes completamente. As mulheres, co-
bertas de esperança, vivem de recordações, mas os homens do
momento, que lhes pertence, e que, cuidadosamente estimado, se
deixa juntar num montículo de tempo, que igualmente lhes per-
tence. Têm de dormir de noite, e então não se podem abastecer.
São puro fogo e aquecem-se (com esse fogo) em pequenos vasos.
Espantosamente esta mulher ficou secretamente estéril com com-
primidos. O coração insaciável do homem nunca iria permitir que
do seu tanque sempre cheio pudesse brotar uma vida."

Extraído de lust, de Elfriede Jelinek, um dos meus três
livros de férias. As páginas estão ainda impregnadas de areia
e do meu feliz espanto. Ninguém sai incólume desta torrente
de violentas e impiedosas metáforas, deste retrato cruel do
nosso tempo.
Romance publicado originalmente em 89 e dado à estampa
em Portugal três anos mais tarde, comprei-o, certamente
a preço de saldo numa feira qualquer, em fevereiro de
96, ainda esta autora austríaca, nas longas e muitas vezes
irónicas curvas da vida, estava longe de saber que viria a ser
nobilizada...

30 julho, 2007

volvido

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007


eu sei, não foi assim um voltar tão imediato....

abraçado o mar, está novamente a ser difícil a ideia de
quebrar o confortável silêncio em que já me instalara.
o receio de não saber já do aroma das palavras precisas.

pressinto que já não sei equilibrar-me na bicicleta.
mas vamos ver. vamos lá pôr isto a rolar outra vez.

e agora, também, tempo de curtir o calor na minha própria
cidade. a minha cidade com sabor a deserto. e o quanto eu gosto
de desertos.

e - pois! - regressar ao trabalho, logo no dia mais quente do ano.

07 julho, 2007

tempo de ir abraçar o mar

tempo de mergulhar em livros.
tempo de nadar demoradamente no doce sorriso das crianças.
tempo de me lavar no mar.
de ficar dentro da noite a escutar a silente vastidão de um
céu pejado de estrelas.
o perfume selvagem da esteva. as falésias de um suave
vermelho. as praias íntimas e ventosas. o sabor bom do sal
sobre a pele. os duches frios. os duches quentes.
o peixe grelhado. os coentros. o pão irresistível. por aí fora...

mas continuem a passar por cá, faço todo o gosto, a porta da
tasca está sempre aberta.

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007 (pormenor de instalação do projecto/grupo flambé,
Galeria Por Amor À Arte)

06 julho, 2007

e deus criou esta mulher

e assim uma canção como esta para alumbrar meu verão...


Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
(imagens retiradas de "Brigitte Bardot Show", 1968)

05 julho, 2007

body and soul

por este rio dos meus dias
querer garimpar a verdade dos sonhos
peregrina viagem
saltando entre os séculos
a procurar teu corpo
ou tua etérea perfeição

neste fio dos meus dias
assaltar os tesouros guardados nos sonos
libertina voragem
como borboleta enlouquecida
beijando tua ausência
alma minha desalmada
na fome do que sou



Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007 (à direita uma obra da artista plástica Raquel Gomes, Galeria Minimal, Porto)

04 julho, 2007

se eu fosse pintor dançavas comigo até ao fim do amor

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007

03 julho, 2007

"pesquisa no campo, desertar, antes que ganhe um cancro" *

* Uma instalação de Carla Filipe (n. 1973, Aveiro) feita
especificamente para a sala IN.TRANSIT do edifício Artes
em Partes, na rua Miguel Bombarda, no Porto.
É constituída por uma série de mais de 100 desenhos a tinta
da china e/ou esferográfica e ainda por colagens e decalques
sobre papel, mais material diverso como postais, fotografias,
recortes de imprensa, etc.
Tudo isto se apresenta como um relato das viagens realizadas
pela artista plástica entre 2002-2005, a destinos como Roter-
dão, Londres, Paris, Berlim, Frankfurt, Kassel.

................«Redação about cameras (foto)»...................

"When i saw pictures about parties in Roterdam. i see nice

and happy people. And i think: it's so great to have holidays
in Roterdam, so relax and dancing. So stupid girl, i'm 30
years old, i must to be menos pateta. OK! The surprise!!...:
when i go to the first partie in a city i saw the realitty, the
people don't dancing (only one or two people, but more ti-
midie). The Carema (máquina fotográfica) it's the anima-
tion on the party!
The machine photograff give other reality, created the mo-
ment (not reall) on the paper. Many people have a camera!
The flash! Many flash. Stupid flash!
Nothing happen!!
So boring...
I want to go to Mexico, or Portugal, or Brasil to dance, all

kind of music.
I'm so desiludida. I don't speak very well, but i'm a good

dancing.... I tentei to dancing, it's true, but not resulted.
When they tiram uma fotografia the people make faces

and positions like a happy people or/in a partie.
They fotograf everithing, photos, people, design... So

strange, in that night i [saw] see everthing and not go out."

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© 2007 (pormenores de "pesquisa no campo, desertar, antes
que ganhe um cancro", uma instalação de Carla Filipe)

Acima, além de pormenores fotográficos da quase babélica
exposição, deixei transcrito na totalidade um dos textos da

artista, originalmente manuscrito a esferográfica num delicioso
e propositadamente pouco ortodoxo inglês...
Deixo ainda, aqui em baixo, um excerto de um texto sobre
esta obra, da autoria de Gisela Leal.

"(...)Processo minucioso este que revela em
pormenores as impressões e a reflexão da
artista, numa intervenção feita de pequenas
narrativas e figurações (por meio do desenho
ou do texto), agrupadas em três blocos/via-
gens. Em cada um deles se percebe uma rela-
ção particular com o lugar de destino. A
possibilidade terá sido sempre, num ou noutro
momento, desertar."



02 julho, 2007

cidade em mutação

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© Porto, Junho, 2007

descobrindo um escritor genial

"(...) Notava o estrangeiro que todos tentavam estudá-lo
com a pouca dissimulação dos cães que farejam o novo
companheiro.
Dirigiu os olhos para a rua. Lá fora tinha o silêncio da

neve.
Um carro de carvão, negríssimo, passava semeando car-

vões pretos sobre o lençol branco; carvões que mais pa-
reciam buracos que davam para as maiores profundezas.
Sentiu desejos de sair para os apanhar, tão forte era o

contraste. O estrangeiro ficou muito tempo a olhar, atra-
vés da dupla vidraça, para a rua turva como num dia de
greve ou de revolução. A tarde tinha sobre si, não o céu,
mas as clarabóias de vidro do gelo.
Sentado diante de Maria Yarsilovna, atreveu-se a olhar

para ela. Não era capaz de compreender aquela palidez e
aquela estupefacção que havia no seu rosto. Parecia a flor
do ópio, ou que se dessangrava numa hemofilia terrível.
Adormecia os que a fitavam, e todos estavam enervados
por ela, a evanescente, sempre com a pasmada expressão
de quem está perante qualquer coisa distante e remota.
Era a imagem que todos contemplavam, a imagem belíssi-

ma que se procura em qualquer terra para adormecer na
sua tertúlia. Parecia que todos estavam ao lado daquela
mulher como quem vela uma doença ou um sono. Dava a
sensação, mesmo quando de pé, de estar deitada e com

os braços fora da roupa, bem vivas as incrustações das
bexigas.
- Ter-se-á julgado personagem de um romance? Muitas

vezes por isso ficam tão escanzeladas e com esse ar de
torre de castelo - ouviu o estrangeiro dizer ao seu lado
Maradiski a Yussuf Pedronilevitch.
O estrangeiro, que tinha também ao pé de si o filósofo
Malvanoff, reparou no enorme volume que lhe fazia o reló-

gio no colete, e por curiosidade perguntou-lhe que horas
eram. Malvanoff, dando-se ares de muita importância, ti-
rou o relógio e abriu três portinhas - uma de cristal e duas
de ouro - para saber as horas.
- Dá as horas e os quartos, tem calendário, tem música...

Veja - e deu corda à música, o que fez que se olhassem
todos uns para os outros com desconfiança, procurando o
bolso em que soava a música como quem procura o que
está a queimar-se.
O estrangeiro olhou para Maria Yarsilovna e contemplou
a sua indiferença. Via-se que era uma mulher terrível, pois

nem sequer voltou a cabeça ao ouvir aquele relógio, com
o qual se poderia fazer a conquista de uma virgenzinha,
dando-lho em troca da sua inocência. (...)"


(excerto de "Maria Yarsilovna", uma falsa novela russa
publicada pela primeira vez em 1927 em Paris, da autoria
do genial Ramón Gómez de la Serna.
retirado de "Seis Falsas Novelas", Edição Antígona, com
tradução de José Colaço Barreiros.)

01 julho, 2007

musa do flamenco



Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
© Estrella Morente na Casa da Música, Porto, Junho 2007