descobrindo um escritor genial
"(...) Notava o estrangeiro que todos tentavam estudá-lo
com a pouca dissimulação dos cães que farejam o novo
companheiro.
Dirigiu os olhos para a rua. Lá fora tinha o silêncio da
neve.
Um carro de carvão, negríssimo, passava semeando car-
vões pretos sobre o lençol branco; carvões que mais pa-
reciam buracos que davam para as maiores profundezas.
Sentiu desejos de sair para os apanhar, tão forte era o
contraste. O estrangeiro ficou muito tempo a olhar, atra-
vés da dupla vidraça, para a rua turva como num dia de
greve ou de revolução. A tarde tinha sobre si, não o céu,
mas as clarabóias de vidro do gelo.
Sentado diante de Maria Yarsilovna, atreveu-se a olhar
para ela. Não era capaz de compreender aquela palidez e
aquela estupefacção que havia no seu rosto. Parecia a flor
do ópio, ou que se dessangrava numa hemofilia terrível.
Adormecia os que a fitavam, e todos estavam enervados
por ela, a evanescente, sempre com a pasmada expressão
de quem está perante qualquer coisa distante e remota.
Era a imagem que todos contemplavam, a imagem belíssi-
ma que se procura em qualquer terra para adormecer na
sua tertúlia. Parecia que todos estavam ao lado daquela
mulher como quem vela uma doença ou um sono. Dava a
sensação, mesmo quando de pé, de estar deitada e com
os braços fora da roupa, bem vivas as incrustações das
bexigas.
- Ter-se-á julgado personagem de um romance? Muitas
vezes por isso ficam tão escanzeladas e com esse ar de
torre de castelo - ouviu o estrangeiro dizer ao seu lado
Maradiski a Yussuf Pedronilevitch.
O estrangeiro, que tinha também ao pé de si o filósofo
Malvanoff, reparou no enorme volume que lhe fazia o reló-
gio no colete, e por curiosidade perguntou-lhe que horas
eram. Malvanoff, dando-se ares de muita importância, ti-
rou o relógio e abriu três portinhas - uma de cristal e duas
de ouro - para saber as horas.
- Dá as horas e os quartos, tem calendário, tem música...
Veja - e deu corda à música, o que fez que se olhassem
todos uns para os outros com desconfiança, procurando o
bolso em que soava a música como quem procura o que
está a queimar-se.
O estrangeiro olhou para Maria Yarsilovna e contemplou
a sua indiferença. Via-se que era uma mulher terrível, pois
nem sequer voltou a cabeça ao ouvir aquele relógio, com
o qual se poderia fazer a conquista de uma virgenzinha,
dando-lho em troca da sua inocência. (...)"
(excerto de "Maria Yarsilovna", uma falsa novela russa
publicada pela primeira vez em 1927 em Paris, da autoria
do genial Ramón Gómez de la Serna.
retirado de "Seis Falsas Novelas", Edição Antígona, com
tradução de José Colaço Barreiros.)
com a pouca dissimulação dos cães que farejam o novo
companheiro.
Dirigiu os olhos para a rua. Lá fora tinha o silêncio da
neve.
Um carro de carvão, negríssimo, passava semeando car-
vões pretos sobre o lençol branco; carvões que mais pa-
reciam buracos que davam para as maiores profundezas.
Sentiu desejos de sair para os apanhar, tão forte era o
contraste. O estrangeiro ficou muito tempo a olhar, atra-
vés da dupla vidraça, para a rua turva como num dia de
greve ou de revolução. A tarde tinha sobre si, não o céu,
mas as clarabóias de vidro do gelo.
Sentado diante de Maria Yarsilovna, atreveu-se a olhar
para ela. Não era capaz de compreender aquela palidez e
aquela estupefacção que havia no seu rosto. Parecia a flor
do ópio, ou que se dessangrava numa hemofilia terrível.
Adormecia os que a fitavam, e todos estavam enervados
por ela, a evanescente, sempre com a pasmada expressão
de quem está perante qualquer coisa distante e remota.
Era a imagem que todos contemplavam, a imagem belíssi-
ma que se procura em qualquer terra para adormecer na
sua tertúlia. Parecia que todos estavam ao lado daquela
mulher como quem vela uma doença ou um sono. Dava a
sensação, mesmo quando de pé, de estar deitada e com
os braços fora da roupa, bem vivas as incrustações das
bexigas.
- Ter-se-á julgado personagem de um romance? Muitas
vezes por isso ficam tão escanzeladas e com esse ar de
torre de castelo - ouviu o estrangeiro dizer ao seu lado
Maradiski a Yussuf Pedronilevitch.
O estrangeiro, que tinha também ao pé de si o filósofo
Malvanoff, reparou no enorme volume que lhe fazia o reló-
gio no colete, e por curiosidade perguntou-lhe que horas
eram. Malvanoff, dando-se ares de muita importância, ti-
rou o relógio e abriu três portinhas - uma de cristal e duas
de ouro - para saber as horas.
- Dá as horas e os quartos, tem calendário, tem música...
Veja - e deu corda à música, o que fez que se olhassem
todos uns para os outros com desconfiança, procurando o
bolso em que soava a música como quem procura o que
está a queimar-se.
O estrangeiro olhou para Maria Yarsilovna e contemplou
a sua indiferença. Via-se que era uma mulher terrível, pois
nem sequer voltou a cabeça ao ouvir aquele relógio, com
o qual se poderia fazer a conquista de uma virgenzinha,
dando-lho em troca da sua inocência. (...)"
(excerto de "Maria Yarsilovna", uma falsa novela russa
publicada pela primeira vez em 1927 em Paris, da autoria
do genial Ramón Gómez de la Serna.
retirado de "Seis Falsas Novelas", Edição Antígona, com
tradução de José Colaço Barreiros.)
2 Comentários:
obrigada pela tua generosidade.
pela partilha.connosco.
gostei.
bjo
esse livro é lindo, eu sou completamente apaixonada pela escrita do ramon gomez de la serna:)
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