Tenho já o bilhete nas mãos, dirijo-me para a entrada, hesito,
olho o visor do telemóvel, falta um minuto para a sessão
começar, recuo uns três passos e pergunto à funcionária que
me atendera, quantos minutos faltam na verdade para o início
do filme.
- Quanto tempo demora a publicidade?
- Oito minutos.
- Então, ainda deve dar tempo para tomar um café...
E saio apressado. Dirijo-me ao balcão da pequena cafetaria do
McDonalds, ali a uns pouco metros das salas de cinema.
Atende-me uma rapariga de olhos muito bonitos.
- Queria, por favor, um café. Cheio, está bem?
Repete o meu pedido, enquanto eu estou a pensar se ela não
poderá ser uma jovem estudante, trabalhando à noite para
ganhar um dinheirito extra.
O café sai da máquina muito lentamente. Aproveito e peço
também uma garrafa de água natural. É magra, de cabelos claros
e está muito bem aprumada. Começo a imaginar que já deve ter
sido, concerteza, eleita alguma vez a "empregada da semana",
parece-me despachada e eficiente.
Traz-me a água. Reparo nos olhos. São azuis, têm algo de oriental.
Desconfio que não deve ser portuguesa. Desço o olhar. Na placa
que tem sobre a camisa, o nome: Tatiana, mais o nome de família
que já não lembro, mas que a confirmava logo como alguém com
provável origem do Leste da Europa.
Traz-me a água. Tento ser simpático, enquanto lhe entrego o
dinheiro.
- É ucraniana ou russa?
Sorri, diz que é russa, afasta-se para ir buscar-me o café, a
chávena já cheia como pedira.
- Fala muito bem português. Há quanto tempo está em Portugal?
- Cinco anos.
- E gosta de viver aqui?
Faz uma careta. Diz que mais ou menos. Está agora a limpar o
balcão. Dá as boas-noites a dois casais que acabam de chegar.
Antes de sair, arrisco ainda a dizer:
- É porque a família está toda lá, não é?
Esboça um sorriso afirmativo. Digo boa-noite e desejo-lhe boa
sorte e saio a correr para o filme. Vou a pensar que o país só tem
a ganhar com estes imigrantes, com este sangue novo, estas
diferentes culturas.
Já na sala, o belíssímo genérico de Crash, o filme ganhador dos
óscares, pouco sei sobre ele, apenas que de alguma maneira
aborda as clivagens raciais que se respiram em Los Angeles, a
forma como as pessoas colidem umas com as outras e não se
vêem, não se encontram, não se tocam. Um filme destes anos
pós-11 de Setembro, destes tempos de desconfianças e medos
profundos.
Embrenhei-me nessas mil histórias cruzadas, vivi os dilemas
dos diversos protagonistas, vieram-me por vezes as lágrimas,
eu que sou um sentimentalão sem remédio.
Só no final, quando saía da sala, voltei a lembrar-me da Tatiana.
De como, nuns breves minutos tão banais, apressados, casuais,
eu tentara não fazer aquilo que nós fazemos a maior parte das
vezes, na agitada vida das nossas cidades, das grandes metró-
poles que nos tornam pequenos e agressivos, que é não enca-
rarmos, não olharmos, não conversarmos, não trocarmos pala-
vras ou gestos simpáticos, ínfimos que sejam, com as pessoas
com quem nos vamos cruzando por aí.
Colisão, um bom filme, uma bela lição.