meus livros de férias, parte dez *
Berlim, Agosto 1990 (photo de h.)"(...) Depois, além disso, ela sabe toda a espécie de coisas políticas,
como por exemplo que a Rússia já não é a Rússia e a queda do
Muro de Berlim, e eu pergunto-lhe como é que ela sabe dessas
coisas e ela diz que é porque estava lá. "Sim, está bem", digo eu, e
ela diz "Sim, posso provar", e sobe as escadas a correr até ao
quarto e volta com um pedaço de cimento pintado mais ou menos
do tamanho de um
cheeseburguer e coloca-o sobre a bancada da
cozinha mesmo diante de mim e do meu pai. "O que é isso?", per-
gunto eu, e ela diz: "Isso é um pedaço do Muro de Berlim."
"Pois é!", diz o meu pai, e fica muito excitado com aquilo."
"É precisamente o que isso é! Não é incrível?" Pega nele e dá-lhe
voltas, sentindo-lhe o peso como se ele tivesse vindo de outro
planeta ou coisa de género. "Quando é que foste ao Muro de
Berlim, querida?" A minha irmã olha para ele, estupefacta.
" Não te lembras?", diz a minha irmã. "Fui com a mãe e a
tia Amy."
"Não me lembro disso", diz o meu pai. "Que idade tinhas?"
Não se lembra de nada. Como se estivesse a perder a memória.
Como é possível que não se lembre de uma coisa destas? Que a
sua própria filha tenha ido ao Muro de Berlim. Ele não é assim
tão velho para estar a perder a memória, mas está.
"Onde estava eu?", diz o meu pai.
"Deves ter ficado em casa", diz a minha irmã.
"Pois devo", diz ele.
Pergunto à minha irmã como é que ela arranjou um peda-
ço do Muro de Berlim e ela diz que atravessavam Berlim na al-
tura em que eles estavam a deitar o muro abaixo e que os tra-
balhadores ofereciam pedaços, tendo-os passado através das
janelas do carro. Diz que parecia uma festa. Ela tinha três anos
e aquelas mãos grandes de homens cabeludos entravam pelas
janelas dando-lhes pedaços de pedra e cimento como se fosse
bolo, e ela não fazia ideia do que estava a acontecer. Olho fixa-
mente para o pedaço de cimento que está sobre a bancada da
cozinha. Um dos lados é liso e plano e está pintado em cor de
turquesa e púrpura, com uma ténue risca amarela que o atra-
vessa ao meio - parece tinta de
spray, talvez um grafito. O
outro lado está partido e é áspero, e podem ver-se os frag-
mentos das coisas com que o cimento foi feito: pequenas
pedras lisas que têm o aspecto de ter vindo de algures nas
profundezas de um bosque e cascalho afiado, misturados com
este cimento calcário que não se parece nada com o america-
no, e depois estas pequeninas partículas brilhantes. Quando
se passa o dedo ao longo do rebordo, produz-se um som que é
mais de vidro do que de pedra. A minha irmã oferece-se para
me deixar levar o pedaço do Muro de Berlim para a escola e
mostrá-lo a todos na minha turma, o que vindo dela é uma
oferta muito generosa, acho eu. Depois o meu pai pega no pe-
sado pedaço do Muro de Berlim e mete-o numa bolsa de plás-
tico hermética de congelador, e quando lhe pergunto porque é
que está a fazer aquilo ele diz que assim não se perde. Diz que
é muito importante que ele não se perca nem seja roubado,
porque é um verdadeiro pedaço vivo da história moderna. O
que é que isso lhe importa? Ele nem sequer tem a certeza se
era vivo nessa altura e agora diz que este pedaço de cimento
está vivo. Não faz sentido nenhum. Tira de uma gaveta um
grande rolo de fita de canalizador e corta um pedaço com os
dentes. Cola a tira de fita na bolsa de plástico, e depois pega
num marcador preto
Magic Marquer e escreve "PEDAÇO
DO MURO DE BERLIM", como se fosse uma espécie de ró-
tulo de museu ou coisa do género. "Aí está", diz ele, "isso de-
ve bastar." É completamente doido. (...)"
Do livro de histórias de Sam Shepard, " O Grande Sonho do Paraíso "* Alguns meses após a queda do Muro de Berlim, o livre
comércio aí estava em força na cidade antes cindida.
Desde os famosos T
rabants até aos uniformes e demais
bugigangas militares do antigo paraíso comunista, tudo se
mercandeava. Uma festa em que todos pareciam ganhar.
O tipo da esquerda, na foto, em tronco nu por causa do calor
inclemente de Agosto, alugava aos turistas um cinzel e um
martelo, não me recordo já por quantos marcos, para quem
quisesse levar o seu pedacito de muro de recordação, ainda
por cima obtido pelas próprias mãos, pelo próprio suado
esforço.
E quem logo compraria isso?
Claro que os americanos.
E com foto e tudo. Para servir de prova.