o bebé
© 2004 ( dois dias de vida)
" A cria do ser humano: deve haver de facto qualquer coisa a pro-
curar, a comprender a esse respeito.
É uma experiência repetitiva e descosida, e quando o bebé dorme a
vida retoma o seu curso, mas quando está acordado é a vida dele que
domina.
Estranhos dias do início, dos quais eu pouco ouvira falar; talvez por-
que durante eles se estabelece uma intimidade exclusiva, o vínculo,
a asfixia, a vertigem - dias divididos aproximadamente em seis par-
tes, nem dia nem noite, uma ou duas horas para a mamada, a mudan-
ça de fraldas, o adormecer de novo, uma ou duas horas de sono, e
recomeça-se.
[(...)]
Não é que antes eu não gostasse de bebés; é que não existiam. Não
havia qualquer ligação, qualquer relação entre eles e eu própria.
Sim, queria ter um filho, um dia. A palavra «bebé», piegas e redun-
dante, feria de invalidade tudo o que referia; tratava-se aos meus
olhos de uma questão menor. (...)
Antes, os bebés eram sobretudo corpos, ruidosos, sujos, que se
babavam, raramente bonitos. Eu preferia os bebés dos animais:
gatinhos, leõezinhos, bicharoquinhos.
Quando o bebé nasceu, comuniquei esta minha preferência àquele
que, insolitamente, se transformara no pai do bebé. Ele discordou de
mim tão friamente que mudei imediatamente de opinião: agora, pre-
firo os bebés. (...)
O bebé tornou-me sentimental; entregou-me à sentimentalidade. Per-
gunto-me o que se poderá fazer com esse vocabulário envelhecido.
Dizer o não-dito: tal é o projecto da escrita. A meia distância entre
dizer e não dizer há o cliché, que enuncia, apesar da usura, uma par-
te de realidade. O bebé entrega-me a uma forma de amizade com os
lugares-comuns; torna-me curiosa a seu respeito, faz com que eu os
levante como se fossem pedras para ver, por baixo deles, o correr
das verdades. (...)
Os bebés dos outros não existiam, compreendo-o agora, porque o be-
bé só existe na comunidade íntima, na sua ligação connosco, os seus
pais.
Damos-lhes nomes em ponto pequeno, nomes privados, que nos en-
chem de júbilo quando os pronunciamos; cheios de consoantes duplas,
de rimas e de soluços, de sons molhados de leite.
Quando está acordado, alimentado, limpo, quando não lhe dói nada e
olha para nós, é já, ao fim de poucas semanas, uma criança. Mas
depois da mamada, tem o seu rosto de recém-nascido: esmagado e
avermelhado pelo seio, besuntado de baba e leite, com os cantos dos
lábios enrugados, olhos fechados como punhos. (...) "
MARIE DARRIEUSSECQ, "O Bebé", Edições Asa, 2003
Comecei este livro este verão e não o acabei ainda; na verdade, é
como se não me apetecesse terminá-lo, pois estou sempre a re-
gressar às suas páginas inaugurais, a tão justa literatura em tão
difícil assunto...
Voltarei aqui a ele.