vida de cão
Por cansaço, falta de tempo, e alguma raiva, não consigo resistir
a deixar aqui lavrado este relato nada literário, esta crónica
desinspirada deste vosso operário.
Perdoai. Ou passem à frente sem o ler, e esperai dias melhores.
Sexta-feira. À hora a que a cidade começava a engasgar-se em
hora de ponta, entrava eu ao serviço. Eran las cinco en punto
de la tarde, estava eu numa espécie de contramão à febril
atmosfera comunitária, em vésperas de um fim-de-semana.
Por volta das 21h30, sair para jantar, e de regresso à labuta um
quarto antes das 23. As mãos na massa até às duas e trinta da
matina. Lá vai o carro pela noite húmida e deserta, a pedir aos
céus para que todos os semáforos se abram miraculosamente no
verde, querer chegar o mais rápido possível, comer qualquer
coisa, depois ainda a higiene, o tempo às vezes corre veloz na
madrugada, ler qualquer coisa apesar do cansaço, a ver se o sono
vem, só apago a luz às quatro. Amanhã também é dia de trabalho.
Sábado. Acordo antes das onze. As crianças estão já acordadas.
Chove. Saio de novo para trabalhar. Pico o ponto (isto é figurati-
vo) ao meio-dia. Volto a sair, para almoçar, pouco depois das
duas. A mãe e a mais velha saem para curtir o sábado.
Levo a pequenita a casa do avô. Estou de regresso ao emprego
antes das cinco. Nova jornada até depois das nove.
Chego a casa tarde, a familia já jantada, a comida fria. Ainda não
foi hoje que ensinei a miúda a andar de bicicleta.
Volto à luta antes das onze. De lá sairei bem perto das três e meia
da noite. Em casa, ainda leio duas páginas d'uma rapariga no in-
verno. Esgotado rendo-me à evidência. Apago a luz.
Domingo. Volto a despertar antes das onze. As crianças alegram
a casa nas suas gritarias, apesar da manhã outra vez chuvosa.
Sinto o corpo pesado, o rosto cinzento, os olhos terrivelmente en-
covados, uma dor de cabeça a precisar rápido de um benuron.
Novamente a laborar do meio-dia até às duas e meia. Saio para
o almoço. Depois nova jornada de luta das quatro às nove e meia
da noite. O jantar fatalmente desacompanhado. Sem sabor. As
miúdas para a cama, sem tempo para a habitual história para
adormecer. Regresso, qual cão obediente, ao local de trabalho.
Duras horas me esperam. Inesperada jornada até às cinco e meio
da manhã. Já não tenho vida para isto. Trabalhar, comer, traba-
lhar, comer de novo, mal dormir, pouco mais me resta.
Contabilizo as horas. Foram num só dia cerca de 15 horas de tra-
balho. Cumprimentei três senhoras da segurança, em três turnos
diferentes, à porta da empresa.
Já em casa, o estômago a dilacerar de fome, desenrasco umas bo-
lachas e fruta para comer. Escrevo um recado, as palavras sarra-
biscadas a custo. Mas nem era preciso. Deito-me a passar das seis.
Não consigo adormecer. Pouco depois, às seis e meia, está a minha
mulher a levantar-se. A aurora anuncia-se quebrando em mil
barulhos o véu de silêncio que cobre a cidade e os seus corpos.
Durmo, assim, menos de duas horas. Ela liga a acordar-me, a vizi-
nha não pôde salvar a situação. Tenho mesmo de ser eu a levar as
meninas à escola.
É portanto, Segunda, folga já estragada. Depois de diversas tarefas
cumpridas, volto a deitar-me um pouco, perto das onze, até à hora
do almoço. O resto do dia como um alienado.
Vazio. Como que esvaído. Fodido.
À noite, fraco consolo de uma alma simples, dou um pulinho até à
fnac. Ouço algumas das novidades discográficas. Espero pelo últi-
mo aviso para ir pagar. Um disco, um livro, um filme.
"Good Bread Alley" de Carl Hancock Rux. "A Queda de Roma e o
Fim da Civilização" de Bryan Ward-Perkins. "Profissão: Repórter"
de Michelangelo Antonioni.
Que isso possa dizer algo melhor sobre mim.
( mas não me pergunteis o que faço, pois sempre direi que sou um
homem do lixo.)
a deixar aqui lavrado este relato nada literário, esta crónica
desinspirada deste vosso operário.
Perdoai. Ou passem à frente sem o ler, e esperai dias melhores.
Sexta-feira. À hora a que a cidade começava a engasgar-se em
hora de ponta, entrava eu ao serviço. Eran las cinco en punto
de la tarde, estava eu numa espécie de contramão à febril
atmosfera comunitária, em vésperas de um fim-de-semana.
Por volta das 21h30, sair para jantar, e de regresso à labuta um
quarto antes das 23. As mãos na massa até às duas e trinta da
matina. Lá vai o carro pela noite húmida e deserta, a pedir aos
céus para que todos os semáforos se abram miraculosamente no
verde, querer chegar o mais rápido possível, comer qualquer
coisa, depois ainda a higiene, o tempo às vezes corre veloz na
madrugada, ler qualquer coisa apesar do cansaço, a ver se o sono
vem, só apago a luz às quatro. Amanhã também é dia de trabalho.
Sábado. Acordo antes das onze. As crianças estão já acordadas.
Chove. Saio de novo para trabalhar. Pico o ponto (isto é figurati-
vo) ao meio-dia. Volto a sair, para almoçar, pouco depois das
duas. A mãe e a mais velha saem para curtir o sábado.
Levo a pequenita a casa do avô. Estou de regresso ao emprego
antes das cinco. Nova jornada até depois das nove.
Chego a casa tarde, a familia já jantada, a comida fria. Ainda não
foi hoje que ensinei a miúda a andar de bicicleta.
Volto à luta antes das onze. De lá sairei bem perto das três e meia
da noite. Em casa, ainda leio duas páginas d'uma rapariga no in-
verno. Esgotado rendo-me à evidência. Apago a luz.
Domingo. Volto a despertar antes das onze. As crianças alegram
a casa nas suas gritarias, apesar da manhã outra vez chuvosa.
Sinto o corpo pesado, o rosto cinzento, os olhos terrivelmente en-
covados, uma dor de cabeça a precisar rápido de um benuron.
Novamente a laborar do meio-dia até às duas e meia. Saio para
o almoço. Depois nova jornada de luta das quatro às nove e meia
da noite. O jantar fatalmente desacompanhado. Sem sabor. As
miúdas para a cama, sem tempo para a habitual história para
adormecer. Regresso, qual cão obediente, ao local de trabalho.
Duras horas me esperam. Inesperada jornada até às cinco e meio
da manhã. Já não tenho vida para isto. Trabalhar, comer, traba-
lhar, comer de novo, mal dormir, pouco mais me resta.
Contabilizo as horas. Foram num só dia cerca de 15 horas de tra-
balho. Cumprimentei três senhoras da segurança, em três turnos
diferentes, à porta da empresa.
Já em casa, o estômago a dilacerar de fome, desenrasco umas bo-
lachas e fruta para comer. Escrevo um recado, as palavras sarra-
biscadas a custo. Mas nem era preciso. Deito-me a passar das seis.
Não consigo adormecer. Pouco depois, às seis e meia, está a minha
mulher a levantar-se. A aurora anuncia-se quebrando em mil
barulhos o véu de silêncio que cobre a cidade e os seus corpos.
Durmo, assim, menos de duas horas. Ela liga a acordar-me, a vizi-
nha não pôde salvar a situação. Tenho mesmo de ser eu a levar as
meninas à escola.
É portanto, Segunda, folga já estragada. Depois de diversas tarefas
cumpridas, volto a deitar-me um pouco, perto das onze, até à hora
do almoço. O resto do dia como um alienado.
Vazio. Como que esvaído. Fodido.
À noite, fraco consolo de uma alma simples, dou um pulinho até à
fnac. Ouço algumas das novidades discográficas. Espero pelo últi-
mo aviso para ir pagar. Um disco, um livro, um filme.
"Good Bread Alley" de Carl Hancock Rux. "A Queda de Roma e o
Fim da Civilização" de Bryan Ward-Perkins. "Profissão: Repórter"
de Michelangelo Antonioni.
Que isso possa dizer algo melhor sobre mim.
( mas não me pergunteis o que faço, pois sempre direi que sou um
homem do lixo.)
3 Comentários:
onde estão os beijinhos?
perderam-se no mundo virtual?
e os beijinhos?
Há dias assim.....
GOSTEI.
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