tudo o que não mostrei
gente que nos fez gente, de pessoas que constituem a arga-
massa do que somos, de ilustres nomes que nos ensinaram,
nos formaram, nos abriram os mais bravos caminhos.
Foi por causa de Eduardo Prado Coelho, se não me engana a
minha traiçoeira memória, que fui a correr comprar "O Amante"
de Marguerite Duras. E depois desse inaugural, vieram todos
os seus outros livros. E vieram também os filmes. Paixão que vivi
intensamente. Devo-lhe essa impetuosa e quase juvenil paixão.
E devo-lhe também a secreta e inigualável Llansol. E o imortal
Musil. E, concerteza ainda, por exemplo, Pascal Guignard ou
Rui Nunes. Um sem fim de nomes e referências.
Li, como todos nós afinal, quase todas as suas crónicas no
"Público" ao longo destes anos. Também eu começava a
leitura do jornal quase sempre por ali. E ali ficava pago o jornal.
Ficava ganho o dia. E a partir disso, muitas vezes, já nem
tinha qualquer sentido ficar depois a ler sobre as comezinhas
venturas deste país ou sobre os ventos perigosos que todos
os dias parecem de forma perpétua varrer o nosso desabrigado
mundo.
Li também muitas das recensões críticas e alguns dos seus
pequenos ensaios. E li os dois primeiros volumes publicados do
seu diário. Era fascinante a abrangência dos seus conhecimentos
e o ecletismo dos seus gostos. E lembro sempre com particular
intensidade, quase cumplicidade, o seu gosto algo inesperado
pelas coisas do Brasil; algumas das suas belas evocações de amo-
rosos dias passados nas praias de Ubatuba.
Lembro-me da primeira vez que o vi ( e apenas numa ou noutra
ocasião pública o terei voltado a ver) . Estávamos a meio dos anos
oitenta. Um pequeno grupo de jovens ávidos de cinema. Num
longínquo Festival de Cinema da Figueira da Foz. Ali estava ele,
numa manhã de sol, sozinho na esplanada defronte ao Grande
Hotel, rodeado de pastas, livros e jornais . Ali estava ele, o crítico
célebre, o crítico criticado, o homem gorduchinho que gostava de
boas polémicas. Ali estava aquele a quem eu devia Duras.
Contaminado por esse amor pelas palavras e imagens durasia-
nas, realizei anos mais tarde um pequeno filme que tinha par-
cialmente como base, um texto da própria Duras sobre o seu
modo de ver e fazer cinema. Apesar de um prémio nacional, de
muitas palavras elogiosas e das mais diversas exibições públicas,
tive sempre o pequeno anseio de que EPC pudesse um dia ver o
meu filme.
Nunca ganhei coragem para lho enviar por correio, para lhe
pedir opinião. E agora, ficarei assim, a remoer a minha cobardia
(medo do ridículo? receio da presunção? a minha excessiva
previdência?), por tudo o que não mostrei. E era simplesmente
pouco.
"Gostaria de tornar bem claro como o gosto da citação
tem a ver com um amor intenso das palavras. Por vezes,
citação que excita pela convicçaõ de que alguém encontrou
um dia as palavras certas - isto é, os nomes próprios -
para dizer algo que em nós foi expressão confusa e enro-
dilhada. Aqui a citação tem um efeito de evidência. Que
é sempre, acreditem, motivo de júbilo.
Por outro lado, a citação é um incitamento. Porque reti-
rar as palavras de um contexto (a citação faz um desvio)
é criar em torno delas um halo de silêncio, um anel de
referências implícitas, que abre o espaço para dizer mais.
O espaço off de uma citação é um convite para se pensar.
A citação condensa, mas ao mesmo tempo indecide - efeito
de descontextualização.
Resta o argumento mais pessoal, quase íntimo: sempre vivi
entre palavras, através dos textos que escrevi sobre os
textos dos outros, e as citações são o material que me
habituei a trabalhar. Poderei chamar a isto efeito de
montagem?
Pequeno exercício quotidiano: ler frases desgarradas, sol-
tá-las arbitrariamente do texto. Isto é, abrir um livro
ao acaso, num sinal vermelho, antes de o filme começar,
durante os anúncios na televisão, e escolher à toa algu-
mas palavras. Sempre pensei que, numa dessas frases, che-
garia a verdade, o encontro decisivo. Uns jogam na lotaria,
outros nas palavras."
em "Tudo o que não escrevi, Diário I (1991-1992)", de
Eduardo Prado Coelho