09 agosto, 2007

livros que me pertencem, III



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" Salvador - com seu Carnaval eléctrico e libertário, com suas
praias desertas e suas praias citadinas, com sua arquitetura
colonial e seus cultos afro-brasileiros - tornou-se a cidade
preferida dos desbundados. Mas o Rio tinha feiras hippies e
São Paulo bairros de roqueiros. "Todo o mundo" fumava ma-

conha e tomava ácido. Luís Carlos Maciel escrevia sobre essa
cena no Pasquim (e depois na edição brasileira da Rolling Stone),
interpretando-a de um ponto de vista que migrava do existen-
cialismo sartriano para as religiões orientais. As ruas - sobretudo
as do Rio e de Salvador - estavam cheias de rapazes cabeludos
e moças metidas em velhas camisolas rendadas. Os apresenta-
dores dos telejornais mais respeitáveis - e muitos jornalistas que
hoje exibem desprezo pelo período - ostentavam cabeleiras mui-
to mais longas do que jamais tinham tido e que jamais voltaram
a ter em toda a sua vida. O grupo Novos Baianos - que a essa
altura produzia não uma fusão mas uma sugestiva (e abrasiva)
justaposição de chorinho e rock - vivia em uma comunidade,
primeiro num amplo apartamento que eles encheram de tendas e
cabanas no Bairro de Botafogo, depois num sítio na área semi-
-rural de Jacarepaguá. Torquato, em sua coluna de jornal, pole-
mizava com o Cinema Novo, numa campanha pelo "cinema mar-
ginal", inspirado na agressividade inicial de Rogério Sganzerla e
Júlio Bressane. Mas os próprios cineastas do Cinema Novo tinham
deixado seus cabelos crescerem, queimavam fumo e tomavam
ácido. Gal era a musa desse universo. Um trecho da praia de
Ipanema que ela freqüentava - justamente onde tinha se amon-
toado areia dragada do fundo do mar para a obra de construção
de um "emissário submarino" de esgoto - ganhou o apelido de
"dunas da gal". Em Salvador os desbundados se encontravam na
praia do Porto da Barra, uma enseadinha perfeita entre dois fortes
coloniais e disposta de frente para o pôr-do-sol como um anfi-
teatro. Era a tradicional praia popular da cidade. Eu agora voltava
a freqüentá-la. Ali - como nas dunas da Gal - os rapazes não
usavam sungas de praia mas as cuecas minímas (e um tanto
transparentes) que já traziam por baixo das calças. E alguns ca-
sais homossexuais (sobretudo femininos) não se esforçavam muito
em esconder suas carícias. Mas os hippies propriamente ditos, os
antitecnológicos e antiurbanos radicais, se refugiavam na distante

praia de Arembepe. Lembro que Glauber, irritado com nossa identi-
ficação com essas turmas, disse numa entrevista (ecoando - mas
com independência - os esboços de hostilidade do Pasquim) que
odiava essa "alienação baiana" em que todos iam "atrás do trio
eléctrico a Arembepe babar dendê". O fato é que só vim a conhe-
cer Arembepe perto dos anos 80, e aí já era uma outra cena, em-
bora os remanescentes hippies continuassem a viver numa aldeia
próxima, entre lagoas cujas águas aparecem douradas nas foto-
grafias - mas eu nunca fui a essa aldeia. Zé Agrippino e Maria
Esther tinham voltado da África transfigurados em ultra-hippies e
viventes de uma "nova era" que, por causa do modo como eles se
punham nela, combinando envolvimento profundo e distanciamento
crítico, nada tinha do tom enjoativo que a expressão conota - co-
notava já - para mim.
Eu, que era visto como precursor de tudo isso - afinal deixara meu

cabelo crescer bem antes da maioria, tinha tomado auasca muito
cedo, tinha adotado o neo-rock'n'roll inglês quando toda essa gente
ainda o repudiava, tinha sido preso e exilado e voltava decepcio-
nando quem esperava rock'n'roll e política (mas reiterando a ambi-
güidade sexual notada em minha figura cênica desde antes da
partida) -, sentia-me tão deslocado (ainda que também encantado)
quanto me sentira nos festivais da ilha de Wight, de Glastonbury ou
de Bath: sentia-me instalado no tempo, mas olhava à frente, em
busca do caminho da música popular brasileira, do caminho do Brasil,
do meu caminho nisso.
Eu não era um desbundado: não tomava drogas, mantinha algum
conforto burguês para minha família com os proventos do meu
trabalho na música, amava o essencial da cultura do Ocidente.
Rogério tinha inventado um apelido para mim que me agradava:
Caretano. Os músicos que eu conhecera ao chegar ao Rio em 64
usavam drogas como um exercício de alheamento do mundo pro-
saico dos homens sensatos, e de aproximação do numinoso, do
transcendente ou da iluminação - e, naturalmente, da "musi-
calidade". Ser ou estar "louco" era considerado um privilé-
gio. As pessoas que nunca "se enlouqueciam" eram merecedoras
de desprezo. É curiosa a dubiedade do termo que esses músicos
tomaram emprestados dos bandidos para designar os que não se
drogavam: caretas. Aparentemente, essa palavra - que tradicio-

nalmente significa "máscara" ou "mascarado" - surgiu entre os
malandros como uma maneira jocosa de dizer "cara" (careta é um
diminutivo de cara): de alguém que não tomou nada para mudar a
mente diz-se que está "de cara limpa". Muitas vezes ouvi músicos
dizerem que tiveram que enfrentar essa ou aquela situação "total-
mente de cara". Algumas vezes ouvi quem dissesse: "Eu estava de
cara limpa, de cara, de careta mesmo, caretinha". Assim, careta,
na gíria bandida dos músicos, queria dizer, em princípio, o contrário
de mascarado. Mas seu uso como um depreciativo dos não-usuá-
rios de drogas terminou por trazer de volta algo do antigo valor
semântico, já que drogar-se significava- com sua conotação de

abrir-se para Deus e para a música - desmascarar-se. Os "caretas"
são os burgueses sempre de cara limpa e sempre de máscara.
Em 72 quase tudo era anatemizado como careta. O trocadilho
armado por Rogério com esse termo e o meu nome - Caretano -
me parecia trazer uma saudável distensão, como se aí se iniciasse

um processo de superação dos fanatismos revolucionários e do luto
por suas derrotas, habilitando-nos assim a poder reconhecer suas
vitórias parciais. Não tínhamos atingido o socialismo, não tínhamos
sequer encontrado uma face humana no socialismo existente; tam-
pouco tínhamos entrado na era de Aquarius ou no Reino do Espírito
Santo; não tínhamos superado o Ocidente, não tínhamos extirpado
o racismo e não tínhamos abolido a hipocrisia sexual. Mas as coisas
nunca voltariam a ser como antes."



Extracto (longo, eu sei!) do livro de Caetano Veloso
"Verdade Tropical", dado à estampa no Brasil em Outubro
de 2007, pela editora "Companhia das Letras" e que, num
gesto veloz - o livro ainda estava empacotado nos
armazéns da livraria "Nova Fronteira" -, eu ganhei de
presente dois meses depois, em dia feliz de aniversário.
Deixo aqui também uma música algo rara do Caetano, da-
quelas que não passam na rádio, que não pertencem a
nenhum dos seus discos de originais mas sim a uma
compilação de singles que um japonês apaixonado pela
sua obra, um tal de Jin Nakahara, empreendeu e reuniu
num CD, que eu creio não ser muito conhecido, porventura
nem mesmo no Brasil...

5 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

meu amigo permite-me a familiariedade,,,
a brasileira música em tempos cruzou-se um voo vertical com os teus amigos mais tristes de manchester... lembro desse tempo muito longíquo / quase dava para fotografia sépia - a virginia ashley) cruzou dizia eu com a menina elis. essa talvez não fosse poeta mas era potente o que cruzado com poeta daria mais és e nada de ás o que me parece bem para gaja.
de qualquer modo o que me apetece dizer,é que esta atmosfera bloguidiana é confortável para quem tem a vida que quer noutro lugar.
Beijos e vou atrás também eu do mar....tua a. ( nesta atmosfera sp.)

11 agosto, 2007 03:10  
Anonymous Anónimo disse...

passei por aqui entre navegações e não me apetece. muita perdição no passado, muitos filmes mal passados, poucas actualizações musicais. pascal comelade diz-te algo?já agora billie dia santo....para gente que canta bons poemas deixo a sugestão

11 agosto, 2007 04:02  
Anonymous Anónimo disse...

"verdades suas".



abraço.

este lado do mar.
:)

Y.

11 agosto, 2007 09:09  
Blogger francisco carvalho disse...

Querida ostara, eu lembro bem desses tempos em que também descobria a Elis... A Deusa maior a cantar a nossa língua...

beijos

12 agosto, 2007 00:00  
Blogger Mónica (em Campanhã) disse...

grande troféu! arembepe eu conheço dos anos 90, e não tive a felicidade de por lá ver Caetano (era mais Daniela quem andava nas ruas por essa época).

19 agosto, 2007 16:12  

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