a tradução do instante
Perdido na manhã folgada, deixo-me preguiçosamente aos
sabores da música do acaso, às delícias do imediato...
Começo por abrir o correio electrónico. Que anjo será este
carteiro tão ubíquo? Que amigo serei, para tão fraca corres-
pondência? Revejo então essas parcas cartas digitais dos dias
mais recentes. E acabo a reler um poema de meu amigo Moloi,
um de seus futuros poemas nanicas:
"O caminho é perigoso/E não me venham dizer/Que o estado
do universo/É formoso ou foi fermoso/Deus tropeçou num
quanta/ De sua propria criação/Lúcifer aproveitou-se da
queda/ O povo quer ascensão"
Moloi não é mole não. Moloi não é sol não. Moloi não é lei não.
Mas é poeta iluminado...
Sorrindo com essa ideia de um deus a tropeçar, tropeço eu nas
musicais palavras de Françoise Sagan que Dalida está a cantar
como que para mim:
"Quand tu dors près de moi/Tu murmures parfois/Le nom
mal oublié/De cet homme que tu aimais/Et tout seul près de
toi/Je me souviens tout bas/Toutes ces choses que je crois/
Mais que toi, ma chèrie, tu ne crois pas... "
Abro depois a caixa-de-pandora dos blogues. Amarrar-me nos
portos amigos. Seguir primeiro a linha de cabotagem. Encostar
o ouvido à poesia de Helena, plena de sageza:
"Se tu soubesses da solidão das palavras/enrolarias o silêncio/
na noite sem pirilampos//depois/como numa prece//ouvirias
do mar o canto."
E sobre esse canto do mar, vem sobrepor-se a voz gaiata da bela
Jeanne Cherhal. Suspendo a viagem pelo écran do computador.
Pego no livrinho do compacto, fico a admirar as curvas bonitas do
seu corpo magro, o rosto em poses teatralizadas nas diversas e
divertidas fotografias. Acompanho, tentando cantarolar, os seus
irónicos versos:
"... Souvent en rigolant il te dit l'amour clandestin, c'est ça
qu'est , et tu le retrouves au Novotel. Il te parle du hasard, de
vos karmas et du destin en te jurant tout bas que bien sûr
c'est toi la plus belle. Vos nuits, assez brèves, sont passable-
ment érotiques. Il t'aime il t'aime il t'aime comme jamais il
n'a aimé. T'es son île, sa papaye ou tout autre object exoti-
que, il t'aime il t'aime il t'aime, mais là il ne peu pas rester..."
O sardónico retrato de um casal normal. Esta miúda tem pinta,
mesmo que os homens não pareçam sair lá muito bem pintados
nas suas canções!...
Sigo agora pelos caminhos do inesperado, como se estivesse a
entrar num labiríntico jardim, sigo como sem bússola pelos
Quatro Caminhos, onde os textos, quase sempre curtos, são de
uma beleza desconcertante:
"Sentada, convexa de tanto ali estar, folheia outra vez o di-
cionário. Quer uma só palavra para amparo, afago e abraço. "
Ah!, como também eu gostava de sabê-lo. Não, a vida não é de
modo algum uma aventura cor-de-rosa. Nem mesmo na casa
virtual da minha estimada Pink:
"O anúncio, na porta da cozinha. Fez-se um silêncio na con-
versa das duas mulheres. Os olhos da minha mãe ficaram
brilhantes de água. Eu engoli em seco. É sempre dramático
alguém tirar a própria vida.Não o conhecia bem. Aliás, só o
tinha visto uma vez. O conhecimento que sempre tive dele
foi tão-só o que ouvi da boca dos outros. Não tinha mau co-
ração. Mas era maluco. Vi-o pela primeira vez (última, agora)
no funeral do meu avô. Estava curiosa, era consensual que
ele era igualzinho ao meu bisavô paterno, que eu já não
conhecera. O meu bisavô era um homem de um enorme
coração e uma figura importante e respeitada lá na aldeia.
Encorpado, tez clara, olho azul, lábios carnudos. Bonito.
Mas as semelhanças acabavam aí, todos diziam. O meu tio
era alheado. Metido consigo. E um homem desregrado.
O frasco vazio na mesa-de-cabeceira, a cadela a soltar ge-
midos do lado de fora da porta trancada por dentro. Ainda
vomitou a caminho do hospital, mas já não se safou.
Nas palavras da minha mãe, teve uma morte igual à sua
vida -triste."
Sigo caminho para a casa de [t]. O seu tão distinto espaço de
puras elegias visuais e assim também as palavras, corpóreas,
cortantes, de respiração clara.
"duas mãos.
juntas.
de não em nadas."
Apetece-me ser eu agora a brincar assim com os sentidos.
Ser eu a jogar:
Palavras como pão
defuntas
sob o vão das escadas.
Abandono o jogo. Sossego um pouco. Ganho fôlego para seguir a
tradução da memória de Alice.
"Na única noite da minha infância, o meu pai entrou no
quarto, o candeeiro de porcelana cuidadosamente limpo
brilhava debaixo do abajour, os tapetes geometricamente
deitados ladeando a esquadria da cama. A minha mãe tirou
a camisa com esforço, apagou a luz e ajoelhou-se conformada
com o desprezo. Na primeira noite em que fui mulher, o
Tiago entrou na cama, demos as mãos, estávamos parados no
amor. A floresta existia, as árvores falavam entre si, o leite
escorria branco na pele das árvores. Entrávamos pelos olhos,
as pupilas juntavam-se e abriam o grande templo. Tudo era
como devia ser. Muito dentro."
E por aí fora, numa beleza inusitada, surpreendente...
Retrato de surdas violências, o vulcânico quotidiano feminino
que habita este país, este tão ilusoriamente manso país...
Vou agora sentar-me junto do piano, na casa mais generosa de
toda a blogosfera. Vou ouvir melodias que me apaziguem.
Encantar-me:
"o movimento do mar é o mesmo que o do deserto.
a luz é presa de uma alma que se alaga. abriga.
____________
como
náufrago clandestino chega devagar a chave que fecha a chuva.
o ar.
o silêncio vigilante."
A música continua a tocar em redor do meu corpo entorpecido.
Tenho a alma incrustada de vozes femininas. Agora é a vez de
uma voz literalmente leonina e das palavras do grande Chico:
"Com açúcar, com afeto/Fiz seu doce predileto/Pra você
parar em casa/Qual o quê/Com seu terno mais bonito/Você
sai, não acredito/Quando diz que não se atrasa/Você diz que
é operário/ Vai em busca do salário/Pra poder me sustentar/
Qual o quê/ No caminho da oficina/Existe um bar em cada
esquina/Pra você comemorar/Sei lá o quê/Sei que alguém
vai sentar junto/Você vai puxar assunto/Discutindo futebol/
E ficar olhando as saias/ De quem vive pelas praias/Coloridas
pelo sol..."
Feito criança, uma coisa confesso: ando perdido de amores por
Nara Leão!
E deixo-me assim, num sorriso de lágrimas, fechado nessa espécie
de felicidade, dentro da minha própria chuva.
Deixam-me?