rio outra vez
"Do ponto de vista do flâneur, em qualquer cidade do mundo,
nenhuma época deve ter sido mais propícia à saudável vaga-
bundagem do que aqueles anos plácidos e líricos, entre 1890 e
1914, que os pósteros chamaram de belle époque. Tudo concorria
a favor. As cidades eram menores - podiam ser metrópoles, mas
ainda não eram megalópoles. As ruas já eram razoavelmente ilu-
minadas e calçadas. Os prédios se mediam quase todos pela esca-
la humana (em Nova Iorque eles só chegariam aos vinte andares
em 1902, com o Flatiron, na rua 23 com Broadway e Quinta). Au-
tomóveis eram raros ou nem existiam - não se conheciam esta-
cionamentos, mas cocheiras. O principal meio de transporte, o
bonde, mesmo elétrico, rolava pelos trilhos à velocidade do bati-
mento cardíaco. E qualquer cidadão decente podia despir mental-
mente uma mulher ao passar por ela, sem o risco de ser preso por
assédio sexual.
Entre essas cidades, nenhuma parecia tão plácida e lírica quanto o
Rio. As ruas centrais eram confortáveis para andar. Havia música
no ar, vinda dos pianos próximos às janelas, das bandas nos core-
tos, dos realejos e até dos amoladores de facas. Nas calçadas das
confeitarias, escritores esgrimiam mots d'esprit à passagem de
donzelas que rebolavam anquinhas artificiais e se deixavam laçar
por uma metáfora. Ia-se ao futebol de chapéu de palhinha, cola-
rinho duro, pérola na gravata e bengala - as bengalas eram indis-
pensáveis ao garbo masculino e serviam também para resolver
pequenas querelas envolvendo a honra. Um presidente da Re-
pública podia ir de bonde, sozinho, de casa para o trabalho e vice-
-versa, misturado ao povo, sem ser incomodado por ninguém. E
tudo isso às margens de uma baía que, vista de cima, pelos pássa-
ros, deixava no chinelo a Terra do Nunca.
Além disso, que outra cidade podia orgulhar-se de que seu pri-
meiro acidente automobilístico tinha sido provocado por um...
poeta? Não um poeta qualquer, mas o mais famoso do país: Olavo
Bilac, autor de um verso - «Ora direis, ouvir estrelas...» - que
provocava síncopes cardíacas nos vários sexos. Bilac era de um
rigor quase científico em suas rimas, mas, em 1902, ao tentar di-
rigir o primeiro e então único automóvel da cidade, esqueceu-se
de perguntar a diferença entre o acelerador e o freio. Simples-
mente tomou emprestado o carro de seu amigo, o jornalista José
do Patrocínio, girou a manivela, correu para o volante e acertou a
primeira árvore que lhe surgiu pela frente. Ninguém morreu, ex-
ceto o carro e a árvore."
(excerto de "RIO DE JANEIRO - Carnaval no fogo", de Ruy Castro)
nenhuma época deve ter sido mais propícia à saudável vaga-
bundagem do que aqueles anos plácidos e líricos, entre 1890 e
1914, que os pósteros chamaram de belle époque. Tudo concorria
a favor. As cidades eram menores - podiam ser metrópoles, mas
ainda não eram megalópoles. As ruas já eram razoavelmente ilu-
minadas e calçadas. Os prédios se mediam quase todos pela esca-
la humana (em Nova Iorque eles só chegariam aos vinte andares
em 1902, com o Flatiron, na rua 23 com Broadway e Quinta). Au-
tomóveis eram raros ou nem existiam - não se conheciam esta-
cionamentos, mas cocheiras. O principal meio de transporte, o
bonde, mesmo elétrico, rolava pelos trilhos à velocidade do bati-
mento cardíaco. E qualquer cidadão decente podia despir mental-
mente uma mulher ao passar por ela, sem o risco de ser preso por
assédio sexual.
Entre essas cidades, nenhuma parecia tão plácida e lírica quanto o
Rio. As ruas centrais eram confortáveis para andar. Havia música
no ar, vinda dos pianos próximos às janelas, das bandas nos core-
tos, dos realejos e até dos amoladores de facas. Nas calçadas das
confeitarias, escritores esgrimiam mots d'esprit à passagem de
donzelas que rebolavam anquinhas artificiais e se deixavam laçar
por uma metáfora. Ia-se ao futebol de chapéu de palhinha, cola-
rinho duro, pérola na gravata e bengala - as bengalas eram indis-
pensáveis ao garbo masculino e serviam também para resolver
pequenas querelas envolvendo a honra. Um presidente da Re-
pública podia ir de bonde, sozinho, de casa para o trabalho e vice-
-versa, misturado ao povo, sem ser incomodado por ninguém. E
tudo isso às margens de uma baía que, vista de cima, pelos pássa-
ros, deixava no chinelo a Terra do Nunca.
Além disso, que outra cidade podia orgulhar-se de que seu pri-
meiro acidente automobilístico tinha sido provocado por um...
poeta? Não um poeta qualquer, mas o mais famoso do país: Olavo
Bilac, autor de um verso - «Ora direis, ouvir estrelas...» - que
provocava síncopes cardíacas nos vários sexos. Bilac era de um
rigor quase científico em suas rimas, mas, em 1902, ao tentar di-
rigir o primeiro e então único automóvel da cidade, esqueceu-se
de perguntar a diferença entre o acelerador e o freio. Simples-
mente tomou emprestado o carro de seu amigo, o jornalista José
do Patrocínio, girou a manivela, correu para o volante e acertou a
primeira árvore que lhe surgiu pela frente. Ninguém morreu, ex-
ceto o carro e a árvore."
(excerto de "RIO DE JANEIRO - Carnaval no fogo", de Ruy Castro)
1 Comentários:
e entre as árvores e um Rio adocicado fico a vadiar....por aqui.
lugar onde pousa a saudade.
__________________beijo Francisco.
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