© Porto, 2005
52. Aldoar ou Campinas. Praça da Liberdade.
O autocarro da minha vida acabou.
Isso mesmo, o autocarro da minha vida, o autocarro de
tantas aventuras e desventuras.
Comecei a andar nele, sozinho, quando ingressei na Escola
Preparatória Leonardo Coimbra, em Aldoar. Nos primeiros
tempos ainda sem passe, apenas com senhas pré-compradas,
pois ia-se muitas vezes a pé, se o tempo estivesse bom, meia
hora de caminho. No verão, não as comprava para poder comer
um geladito, um
perna de pau ou um
supermáxi. Ou então
para comprar os cromos do
Sandokan ou dos
Vikings...
Foi sempre o autocarro que se apanhava para a Boavista ou
para a Baixa. Para os passeios dos tristes.
Os insuportáveis domingos quando nem havia ainda shopppings
centers (ou só reinava o Brasília e mais tarde o Dallas), com
dezenas de pessoas a acumularem-se a partir das duas da tarde
nas paragens. O desespero da espera. Chegava-se a apanhar o
autocarro em sentido contrário, até ao fim da linha, para na
volta assegurar um lugar, e mesmo assim podia não ser sentado.
Os autocarros apinhados como autênticas latas de sardinhas.
O pessoal que entrava pela porta de trás. Os motoristas que
teimavam em não partir. Os insultos. Os odores. Os calores. O
sabor do calão do Porto. A pronúncia tripeira no seu melhor.
Passavam de meia em meia-hora, ou mesmo mais, e mesmo
assim sempre "completos", cheios que nem ovos.
E passava o das duas e meia, sem parar, e lá se ia a sessão das
três no Batalha ou na Sala-Bebé (também seria difícil subir
31 de Janeiro a correr, com a feijoada ou o cozido ainda mal
acomodada no bucho...), e passava o das três, também completo,
nem sonhar portanto com a sessão das três e meia no Trindade,
e passava o das três e meia, e até eu já tinha coragem para entrar
por trás, não se fosse perder a oportunidade de uma bilharada no
Aviz, no Ceuta ou no Embaixador, antes da sessão das cinco-e-
-meia ou da seis, que podia ser agora nas salas do Lumière.
Muitas vezes só se conseguia picar a senha já em plena Praça ou
descendo os Clérigos, depois do autocarro meio esvaziado na
Cordoaria. E muitos não resistiam à tentação de voltar a guardá-
-la no bolso. Miserável.
Este autocarro em que fui crescendo, que acompanhou toda a
adolescência. As senhas maradas. As senhas de 1 módulo que
usávamos destemidamente para toda a viagem. O posiciona-
mento estratégico junto à porta de saída por causa dos "picas".
As primeiras saídas nocturnas da juventude. Para ir beber uns
finos às cervejarias da Baixa ou da Boavista. Ou comer um gelado
de mesa, a abarrotar de chantilly. Ou então um cachorro, enchar-
cado em mostarda e
ketchup. Uns magros rissóis. Uma france-
sinha picantíssima(eu nunca tinha dinheiro para isso). Iguarias
e alegrias de pobre.
O último autocarro da noite. O da uma menos um quarto, que
sem dó, tantas vezes, imperiosamente partiu sem nós...
E lá vínhamos, eu e os meus comparsas desses tempos, pela
noite fora, atravessando a cidade a pé; por vezes, com alguma
sorte, chegando a apanhar algum dos da "recolha"...
O autocarro, já menino sério e com direito a passe, que diaria-
mente apanhei também nos tempos da faculdade.
O autocarro que me levava para tantas noites de borga, de
cinemas, de noites de tédio, de conversas desesperançadas
em esconsos cafés, de lugares de pouca fama, frequentados por
bêbados, chulos, putas e punks.
O autocarro que tantas vezes me levou até à Cordoaria. Quem
se lembra do mercado terceiro-mundista que lá havia?
O autocarro dos domingos de manhã que me levava para as
sessões do Cineclube no já decadente Batalha.
Os meus verdes anos das tertúlias no saudoso
Luso...Os sonhos
quebrados como amendoins rançosos...
Os amores e os desamores. As paixões secretas. Os rostos de
uma cartografia muito íntima.
Desapareceu o 52. Sinto que se foi parte da minha vida.
Há muitos anos já que não o frequentava, praticamente desde
que deixei a casa dos pais, mas mesmo assim não me conformo.
(E para ir para a Baixa, ou voltar, também me serviram, milha-
res de vezes, o 41 para Guifões ou Lomba, o 44 para Leça, o 76
também para Leça, mais directo, e ainda o 56 para o Aeroporto.
Nem falar das corridas de umas paragens para as outras...)
Como não me conformo que as ruas mudem de nome. Como nunca
me conformei que o aeroporto tivesse o nome de um malogrado
primeiro-ministro. (Para mim será sempre Pedras Rubras. Haverá
nome mais belo, a propósito? Como Antas era infinitamente
melhor que estádio do Dragão...)
Mas será também isto o progresso. Nada há a fazer.
Agora o 52 tem o número das calças mais famosas do mundo,
o 501, mas nem isso me alegrará. Adeus, 52! Paz à tua alma,
e digo isto com lágrimas.
P.S.: O texto foi escrito um pouco de jacto, um pouco à flor da pele.Está demasiado elíptico, eu sei, e muito imperfeito. Mas estáassim a minha memória.Também não podia torná-lo muito mais longo (quem na verdade o leria?).