30 novembro, 2007

água somos, seiva seremos

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A avó de Molares. A avó das "obras novas". A avó Ana. A avó que
lembrarei sempre vestida de negro. 97 anos. Quase um inteiro
século. Treze gestações. Onze filhos. Trinta e oito netos. Os já
quase incontáveis bisnetos. Um trineto alemão que já não pôde
conhecer. Família grande, mais ou menos dispersa, mais ou menos
desunida. No melhor e no pior, o Minho em todo o seu genético
esplendor...

Mas mesmo assim, avó, como não bendizer teu ventre?
E amanhã, eu sei, o sol levantar-se-à mais forte.

29 novembro, 2007

de um livro de Rui Nunes

"o arrepio é um sulco na minha fraca coesão"





28 novembro, 2007

sociedade (num café do século passado)

- O amigo, por aqui?
- Sim. Parou de chover agora, resolvi vir por aí abaixo.
Pequeno silêncio naquele canto do café. Um, leva o copo de
cerveja choca à boca. O outro, esmigalha aos poucos um jesuíta
entre os dedos. No fim, chupa-os.
- Mas o que é que havia aqui ontem?
O primeiro velho grunhe uma interjeição qualquer, não
percebe a pergunta.
- O que é que havia ontem? Disseste que tinhas vindo cá.
- Eu não sei se vim cá ontem... Não sei bem se foi ontem. Já
não me lembro dos dias...
Sacode as migalhas das calças. Levanta uma perna a custo,
apoia-a noutra cadeira. Observa a bainha das calças. Está
suja de lama. Diz qualquer coisa imperceptível, movimenta
a perna, rodando-a, para o outro ver. Rosna qualquer coisa de
novo. Desta vez entende-se.
- Filha-da-puta! Viu-me e nem ligou! Molhou-me todo!...
Que se foda! Ela e quem lhe deu o carro!

Um terceiro velho está a fazer o seu pedido ao balcão.
Chega à mesa, de pratinho na mão, o guardanapo a adejar,
ameaçando levantar voo.
- Hoje vai de rabanadas!
- Já é natal outra vez??
Silêncio seco e breve. Depois, responde a queixar-se:
- É o que me impinge ali o Fernandinho. Pedi uma coisa mole,
por causa dos dentes, mas isto é mais caro que os pastéis, são
quarenta escudos.
Come. A fina rabanada está a acabar-se depressa. Os lábios
lambuzados tremem-lhe. A língua escura percorre-os. A manga
puída do casaco completa a tarefa, fazendo desaparecer o último
vestígio de açucar.
- É bom. Mas é um roubo... Uma simples fatia de pão, quarenta
escudos!

Chega um quarto homem. É muito alto, um pouco mais novo
que os demais, caminha resolutamente, sem a menor dificuldade,
por entre as desordenadas mesas da cafetaria. Traz o guarda-
-chuva na mão esquerda, a gabardine fechada, levanta o braço
direito até à altura do queixo, diz como se falasse para um
microfone:
- Boa-tarde, meus senhores!
Depois, com o guarda-chuva empunhado, aponta para o
primeiro velho.
- O senhor faltou aqui há dias.
É o segundo velho que se interpõe, clarificando a questão:
- Ele só vem cá às segundas e às sextas, para distribuir os
prémios.
Suspira, enfadado, o que acabara de chegar.
- Pois, a lotaria! Que números! Puto de azar! Seiscentos e
trinta quatro. Em vez do três havia de ser o sete... Sempre
eram sessenta contos. Caralho de azar! Pobre tem que ser
sempre pobre.

27 novembro, 2007

Poesia, s.f.

do encantador-mor das palavras da nossa língua,
o fascinante poeta brasileiro Manoel de Barros

Raiz de água larga no rosto da noite
Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de
um homem
Designa também a armação de objectos lúdicos com
emprego de palavras imagens cores sons etc.
geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas
loucos e bêbados

26 novembro, 2007

um mundo pouco rosa

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© Hospital S.João, Porto, 2007 (fotos de telemóvel)

"(...)
Ele: E não há nada que eu possa fazer enquanto espero...? Tenho

mesmo de estar aqui à espera das análises 3 horas?
Eu: Bem,... não é obrigado a nada, se quiser assinar um termo de

responsabilidade e ir embora...
Ele: Não há assim uma Internet, um Messenger que eu possa usar,

têm aí os computadores (a apontar para aquele onde eu estava a
ver a radiografia de uma doente)...
Eu: Pois, mas estes, como compreenderá são para nós trabalharmos...
Ele: Enfim, é uma tristeza, não há condições... A pessoa quando

vem ao hospital, mesmo que não esteja doente, sente-se mesmo
doente..." *

* Texto parcialmente retirado de um dos meu blogues predilectos. Onde vale

a pena a consulta. O olhar perspicaz da autora, a clínica concisão dos seus
textos, a precisão sapiente das suas palavras.


24 novembro, 2007

não sei falar de control (ainda)

"É claro que não consigo ver Control como um filme. O tempo
que o filme recria foi o meu também; os Joy Division eram os
músicos de que eu mais gostava; eu tinha a mesma idade que
eles; vivia lá nos mesmos lugares; e, mais do que tudo, a músi-
ca deles afectou muito a minha vida."

(Miguel Esteves Cardoso, 10/Nov./2007, Expresso)

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"Joy Division é só um lugar da música. Onde não há mais
ninguém e é terrível viajar de passagem, é geral ficar e não
poder fugir. Joy Division é só os escombros de uma paisagem,
todas as nenhumas tonalidades do negro fixo, a sorte, e a parte
branquíssima da solidão. Onde não há mais ninguém e o animal,
permanentemente ferido, acha o seu uivo final. Joy Division é
apenas um problema que se pôs à música. E se é trágico que
não tenha solução, é certamente belo conhecê-lo inteiramente.
E dizê-lo.
Que são esses pedaços e cacos que trazem na palma da mão
como se fossem sementes para plantar, bagos para comer?"

(Miguel Esteves Cardoso, Música e Som, Nov./Dez. 1981)

23 novembro, 2007

escutar a chuva

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© 2007 (fotos tiradas com telemóvel)

22 novembro, 2007

betty davis' voice

21 novembro, 2007

da rosa fixa (prosa 162)

de Maria Velho da Costa


Vidas jogam-se de uma grande agonia
possível ao Sul. A tormenta não é
geográfica. Ao Norte, o urro contido
assemelha o escarvar do cavalo
da insídia. Só o amor é justiça, ó
abandonados.

20 novembro, 2007

cidade mutante

A cidade outonal.
A cidade que envelheceu mal.
A cidade invicta mas moribunda.
Porto de desabrigados.

Contudo, ela move-se.
(comove-me.)

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© Porto, Novembro 2007



Uma cidade a morrer é sempre um espaço mutante.
Gesta oblíqua.
Corpos, desejos, vontades, sonhos transmutáveis.
Secreta força.
Lutemos.
Dancemos sobre o chão puro da nossa alegria.
Aplaudamos a ousadia, a coragem dos que abrem caminho.
Uma cidade a morrer é sempre uma cidade a renascer.
Isso, dancemos.
Força, puxemos pelo seu ritmo...

18 novembro, 2007

"Fifth Avenue", um poema de J.M.Fonollosa

Isto de um homem se sentir só, à saída
do trabalho, do cinema, ao ir pra casa...

Saber que ninguém espera que cheguemos,
para alegrar-se ao ver-nos, ou rechaçar-nos,
torna inimiga, deserta
e inóspita a mais povoada rua.

Os amigos... Contam-me problemas
e com a pressa desandam. E uma pessoa fica
de novo e outra vez sozinha, constrangida
a enroscar-se no seu ego e no seu tédio.

Com que vazio deparamos em nós próprios
quando buscamos o nosso eu interno.
Que ser desagradável se contempla
examinando o nosso próprio ser.

E aqui, entre tanta gente, na cidade,
sentimos que nada interessamos a ninguém.

(do livro "Cidade do Homem: New YorK", tradução de
Júlio Henriques)

16 novembro, 2007

"tant qu'il y aura des étoiles"

15 novembro, 2007

em trânsito*

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*Livremente inspirado aqui. As minhas desculpas, Ana Cláudia.

14 novembro, 2007

nove pétalas

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13 novembro, 2007

pedras cansadas

as pedras cansadas dos homens,
dos fatigados passos dos homens.

o céu azul mas sem laivos de mel.
uma ampulheta que traz o outono.

meu coração imponderável
recortando os instantes supensos.

ruas juncadas de purpúreas folhas.
lágrimas esmaecidas de um deus
qualquer.

12 novembro, 2007

pergunta mortal

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11 novembro, 2007

illuminati, de Artur Rockzane


a inquietude devora-me, fascina-me
o paradoxo acomodou-se na minha canção
- uma cigana assim predisse o meu destino
e ando de asilo em asilo em busca d'iluminados.

do livro "Hortênsio Miraflor - Suicídio e Obra"
edições Quasi, 2001

10 novembro, 2007

love is in the hair

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09 novembro, 2007

"o meu chapéu é o alto do céu"

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08 novembro, 2007

a nossa vida de segredos

"Em tempo algum e com ninguém me foi possível
superar esta separação de solidão que afecta,
imediatamente, tudo o que eu experimento.
Que o transporta para uma parte secreta onde
ela se deposita. Nunca consegui escancarar
esta fenda de silêncio onde tudo cai primeiro
em mim.
Ora o amor, é isso: a vida secreta, a vida
separada e sagrada, a vida afastada da socie-
dade. A vida à parte da família e da sociedade,
antes do dia, antes da linguagem. Vida viví-
para, na escuridão, sem voz, ignorando mesmo
o nascimento."

de "A Vida Secreta" de Pascal Guignard

07 novembro, 2007

mais um dos cem pequenos romances de Manganelli

"QUARENTA"

Entre o fim de domingo e o começo de segunda-feira, ele começa
a dispor a semana entretecendo um subtil, árduo cômputo de
encontros. Em geral, dedica a segunda-feira, dia obtuso, que
aguenta o peso instável de uma semana, a uma das suas amigas
chatas: chama chatas às amigas que não propõem problemas
afectivos, sexuais, intelectuais; que ele poderia, de um dia para o
outro, decidir não voltar a ver, com as quais nunca teve nem
sequer uma inócua fraqueza. As amigas chatas são cinco: duas
sofrem de crises depressivas, uma delas é uma angustiada, a
quarta absolutamente néscia, mas disposta a rir com as suas
piadas, a quinta relativamente equilibrada mas demasiado culta.
As depressivas, quando não estão deprimidas, são, uma, amável e
delicada, submaternal, a segunda, bruscamente comunicativa e
sincera, um pouco amaneirada; a angustiada é óptima, fora a
angústia, cautelosa, ágil, inconsistente, submissa. Vamos supor
que escolhe a angustiada e a encontra disponível. Não pode excluir
uma tardia crise de angústia, e para o dia seguinte fixará dois
encontros - com um amigo caprichoso e generoso, e com uma
mulher pacata e um pouco banal, alheia a crises. Decidirá depois.
Na quarta-feira, gostaria de ver uma mulher que o deseja, mas que
não ama, mas não ousa falar-lhe antes de ter arrumado a quinta-
-feira com uma mulher extremamente consoladora, talvez apaixo-
nada, à qual poderá confiar as inevitáveis angústias do encontro
anterior, qualquer que tenha sido o seu desfecho. A sexta-feira é
masculina: tem três amigos, nenhum deles prestigioso; um, um
pouco inteligente de mais para ele, um outro, infeliz e portanto
inclinado à gratidão, um terceiro, aborrecido porque apaixonado,
justamente não correspondido. No sábado, deverá juntar-se a
uma companhia genérica, que geralmente o acolhe sem fazer caso
dele, mas sem má vontade. É o dia anónimo e basta-lhe não ser
obrigado a dançar. Escolhe, pois, companhias de meia idade. Rara-
mente bebe de mais; não faz novas amizades; não chega tarde a
casa. Espera-o o domingo, o terrível dia do Senhor, se não tivesse
morrido, da família, do sexo. Dada a vacuidade estudou o itinerário
da semana; com o único, premeditado objectivo de adiar a revela-
ção e o suicídio, como faz, pacientemente, desde o dia do nasci-
mento.

do livro "Centúria" (edições 70), de Giorgio Manganelli

06 novembro, 2007

as lágrimas como canções



as minhas lágrimas queriam ser tantas canções.
como estrelas num céu demasiado secreto.
como vulcões que me lavrassem o sono.
como sorrisos a levantar do chão.
como larvas que hibernassem na raiva.
parvas lágrimas na valsa vã da solidão.
alegrias devoradas no casulo.
as minhas lágrimas quase só caem por decreto.
são a água triste de um sonho esquisito.
nem sequer sabem como divinos limões.
são fina chuva tanto como saraiva.
são o lar das minhas alarves rimas.
são saudade sem dono.
são tão pequeninos nadas.
são dorzitas tão depenadas.
são fitas, nem públicas nem íntimas.
são ópera bufa em curto-circuito.
são falso blues num céu estupidamente azul.

05 novembro, 2007

e nós o sol da foz

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04 novembro, 2007

"on a du soleil"

03 novembro, 2007

senhas-refeição, de Eduarda Chiotte

O estrangeiro tem uma fome
incrível do nosso romance?

Não é surpreendente
que tendo atravessado as fases clássicas
regrida agora ao estádio oral.

Svevo,
Günter,
Faulkner,
Thomas Wolf,
Fitzerald,
Hemingway,
Green
desejam empanturrar-se de trutas de Penizes,
papos de anjo,
chanfana,
sidónios,
lampreia à bordalesa,
bacalhau.

Precisamente na altura em que os cientistas abordam
a carcinogénese
e técnicos e profissionais de nível superior
os problemas da moderna nutrição,
é que o instinto revela oscilações e anomalias: com
efeito, o figurino alimentar
ramifica-se por milhares e milhares de salários em
atraso. Devotada,
profunda anorexia.

Contudo, neste roteiro gastronómico,
e à medida que vão sendo esclarecidos tais problemas,
surgem, paradoxalmente, escritores ciclotímicos mais
complacentes com o encolher da mesa.

Cuidado, apenas, com o nosso (e seu)
cozido à portuguesa.

02 novembro, 2007

don't read my tears

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