31 outubro, 2007

tilt

Não resisto. Vejo-me a escrever: tanta gente a dar o tilt.
Continuo. Chegará a minha vez?

Entretanto, a minha filha abeira-se do computador e pergunta
o que é isso de dar o tilt. Não tenho como fugir. Respondo,
envergonhado, que são pessoas que não andam lá muito bem
da cabeça ou da vida que levam. Que tenho sabido de muitas
dores, que tenho visto muitas lágrimas, que há tantos corações
aflitivamente tristes.
Mas papá, tu achas que também estás a dar o tilt?
Digo-lhe prontamente que não mas logo acrescento algo
mais esquisito, algo a que também não pude resistir.
A verdade, querida filha, é que o teu doido pai nunca foi nenhum
ás dos flippers. E ponho-me a trautear a canção dos Táxi.
Pai, lá estás tu com essas cantorias estranhas.

Chega cá, que eu conto-te um segredo.
Inclina-se para mim, sussurro-lhe ao ouvido.
Só o amor nos salvará a existência. De resto, penaremos todos
por aí. Sobreviventes. Como cães sem língua. Como lobos sem
lágrimas. Como deuses sem lei.
Não percebi nada do que disseste.
Deixa lá, que isto são apenas umas coisitas escritas.
Uma voz de padre que às vezes me vem.

30 outubro, 2007

um poema de António Dacosta

Tuas coisas de mulher
O pente
Os sapatos
A escova
As meias naturais
A camisa ingénua
Os seios despertos

A desordem dos restos fúteis
Do teu corpo nu

29 outubro, 2007

bastariam as sombras como grafitos

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© Porto, 2007

28 outubro, 2007

auto-retrato no retrovisor

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© 2007

27 outubro, 2007

Poema, de Manoel de Barros

A poesia está guardada nas palavras - é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não entender quase tudo.
Prepondero a sandeu.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não cultivo conexões com o real.
Para mim, poderoso não é aquele que descobre ouro,
Poderoso para mim é aquele que descobre as insignificâncias:
(do mundo e nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei muito emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.

do livro "O Encantador de Palavras", ediçõesQuasi, 2000

26 outubro, 2007

olhar vigilante

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© Museu de Serralves, Porto, 2007 (vista parcial de
"Inventário dos objectos que pertenceram a uma senhora idosa
de Baden-Baden", 48 fotos p/b c/ moldura metálica, de
Christian Boltansky)

25 outubro, 2007

eu também aprendi a gostar de country (é isso ir ficando velho?)



"(...) Eu nunca gostei de country. Sempre achei que era a
música mais chata na história do universo, até que comecei
a perceber as suas especifidades. A country tem um conjunto
de regras muito difíceis: não se podem usar analogias, metá-
foras (excepto algumas muito pirosas), não pode ter subter-
fúgios, sarcasmo, ironia, apenas emoções directas, sentimentos
que qualquer pessoa pode comprender imediatamente. E isso
não é nada fácil, principalmente para uma pessoa como eu que
joga 'mind games' e brinca com a linguagem."

Robert Wyatt (retirado de uma conversa com o jornalista
Rui Tentúgal, publicada no dia 5 deste mês no Expresso)

24 outubro, 2007

verso a verso, de Fiama Hasse Pais Brandão

Nada existe
sem a face real e o verso imaginário.
Desse modo repito
emoções que já senti
em outros versos.
Neste ou naquele motivo
que também na vida se repete
cada verso reencontra em outro poema
o mesmo verso.

23 outubro, 2007

estar no museu

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© Porto, 2007 (vista parcial de "Entrare nell'opera", um
trabalho de Givanni Anselmo de 1971 que acabou por inspirar o
título da exposição "A fotografia na colecção da Fundação de
Serralves - ENTRAR NA OBRA, ESTAR NO MUNDO")

"Eu, o mundo, as coisas, a vida, somos
situações de energia e o essencial é não
as cristalizar, pois mantê-las abertas e
vivas é uma função da nossa existência."

Giovanni Anselmo

22 outubro, 2007

estes dias de lágrimas a brincar


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© Julho, 2007

21 outubro, 2007

duas meninas giram meu sol

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© 2007

20 outubro, 2007

uma menina gira e o sol

Ela a irromper radiosa pelo escritório, a irromper pelo meio da
tarde mansa, a luz deste outono de veraneio ateando um lume
breve na beleza dos seus cabelos finos, as mãozinhas escondidas
atrás das costas:
- Papá, tenho uma surpresa para ti!
- Ai que bom! E o que é, filhinha?
- Ta-ta-ta-tam!! - estendeu-me os braços, decidida, com um
sorriso orgulhoso a bailar-lhe nos lábios.

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- Ah, que lindo! Que surpresa boa! Tu já estás a começar a
saber desenhar.
E ali estava a minha princesa de três anos, a olhar fixamente
para mim, num sorriso eterno, os olhos a piscar de alegria.
- E quem está aqui no desenho?, pergunto.
- É o sol e uma menina gira!
- Tu é que és a menina gira! Deixa-me dar-te um beijinho de
parabéns. Eu vou guardar este desenho muito bem guardado e
pôr aqui a data de hoje. Empresta-me uma das tuas canetas.
- Espera, pai! Falta desenhar a relva e uma estrada. Quero
fazer outro desenho. Dá-me mais folhas.
- Está bem, mas podias tentar, agora, desenhar a relva e o
o céu com outras cores.
- Eu não quero desenhar o céu, quero uma estrada.
- Está bem, princesa. Assim até é melhor, não havendo
céu, concerteza que também não haverá chuva...
Saiu, toda despachada, e voltou dali a pouco, os olhos a trans-
bordar de puríssimo contentamento.
- Está aqui outra surpresa para ti, pai!

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- Ai, é? Outra?
- Mais um sol e uma rapariga fixe!
- Uau! Uma rapariga fixe e gira! Está tão engraçado! E a relva
tão verdinha. Deve estar a ser regada com muito carinho todos
os dias... Pronto, também vou guardar este desenho.
- Mas eu esqueci-me duma coisa, pai! Esqueci-me de fazer a
estrada!
- Está bem assim, filha. Com relva nem sequer se precisa de
estrada. Deixa lá, assim é que o desenho está perfeitinho.
- Então, vou fazer outro!
Uns minutos depois lá estava ela outra vez, agora já sem
esconder as mãos para anunciar a feliz surpresa.

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- E o que é agora o desenho, filha?
- Agora és tu, a relva, mais o sol. E aqui são as paredes. Achas
que estás bonito?
- Sim, estou muito jeitoso! E isto aqui à volta parece mesmo
uma moldura.
- Mas são as paredes. E aqui, já estava a esquecer-me, está a
estrada. - disse, apontando para um único traço roxo na hori-
zontal, solto, no fundo da folha.
- Está bem, assim fico com uma estrada para levar a bicicleta
até ao jardim. Deixa-me dar-te mais um beijinho. A escolinha
está a fazer-te muito bem, já estás a aprender a desenhar
pequenas historinhas. Eu vou fazer uma colecção dos teus
desenhos.
- Ó pai, e depois vais pô-los aí no computador?
- Como adivinhaste tu, menina esperta?!

19 outubro, 2007

foto de família

quem na verdade tratará dos que ficarão sem riscar nada
na nova (des) ordem mundial?...

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© 2007

18 outubro, 2007

inveja dos caetanos múltiplos

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© Coliseu do Porto, Outubro 2007

17 outubro, 2007

outono é como quem diz

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© 2007

"Chegava da praia. Verão. Cheirava
forte. Tudo na conjura para umas tiradas
das boas, se me sentasse à janela na
caça da escrita. Na caça, como de
costume. De Verão escreve-se mais. De
Inverno, melhor. Explico, de Verão são
odes ao corpo e aos cheiros. Inverno
fora, sai a palavra doída, baladinha
solitária. Se a lua influi nos partos e
faltas de amor, porque não, as estações,
na predisposição da escrita?"

excerto de "Conto é como quem diz" (1987), de
Isabel Almeida Santos

15 outubro, 2007

sem eira nem eixo

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© 2007

12 outubro, 2007

chiotequenuncalilessing (truque de ocasião)


O CPI e O GRÉMIO LITERÁRIO
de Eduarda Chiote

Sinto uma vontade irreprimível
de escrever.

Porque nesta erupção, interrogo-me, os pulmões
são afectados?

Sinto uma vontade dramática de
escrever
mas não sobre imaginário fulgurante.

Cadáveres. Cinzas. Lodos. Pedras.

Matéria ingrata, amorfa; aforismos,
impressões,
pequenos nadas.

A semelhante caudal,
os românticos chamariam Daimon. Confidência.
Inspiração. Mas , de inspiração,
só conheço a realidade respiratória,
desenxabida como peixe congelado.

Obviamente
em ligação com o instinto corrector de acidentes:
a descongelação, em Hel Ruiz, fez subir
o preço do café,
quatro políticos reunidos
vão baixar, por certo, a cotação do livro
no mercado.

11 outubro, 2007

ainda a luz no avesso do mundo

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© Porto, 2007 (pormenor de "Encore" da exposição de
François Dufrêne no Museu de Serralves)

10 outubro, 2007

corsário



Ar puro. Às vezes esta necessidade. Às vezes esta vontade
do ar mais puro. De uma quieta e miraculosa liberdade.
Às vezes essa incapacidade. Essa impossibilidade de osmose.
Ah!, quem me dera ser inteiro no âmago de uma canção como
esta...
Às vezes esta vontade indisfarçável de cantar o silêncio.
Essa miragem de espantar a minha própria sombra.
Ah!, cantar assim deve saber tão bem...

Não tenho o dom de cantar. Apenas sei chorar à boleia de
estrangeiras melodias, na ilharga de alheias dores.
Ah!, quem me dera ser corsário no coração de uma ave...

09 outubro, 2007

como luz surrealista a despenhar-se sobre lisboa

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© Lisboa, Outubro 2007 (poema de Carla de Elsinore, a rapariga
que gosta de gaivotas)

08 outubro, 2007

excitação

"Oferece-te onde não possas recusar após
desvio, tentativas, tentações. Carne

viva, há outra regra?"

em "Da rosa fixa", de Maria Velho da Costa

06 outubro, 2007

o sal do serra

Parabéns, amigo, pelo bonito e redondo número.
Pelo que sei, cinquenta muito bem vividos.
Que sejam outros tantos!
Aí sempre para as curvas.

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© 2007 (poema de Alberto Serra)

04 outubro, 2007

muito gosto eu de Dacosta



Não descobri terras
Não fundei cidades
Não tive cavalos nem pagens
Não fui amigo do rei
Não pelejei em África
Não fui pirata
Não conquistei o Peru
Não raptei freiras
Não fui à Índia
Não me cobri de glória
Não tive estátuas

O que de mim sei
Encalhou no tempo



poema de António Dacosta, em "A Cal dos Muros"

03 outubro, 2007

"No meu país" de Sebastião Alba


No meu país
dardejando do sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
o equilíbrio jacente
faz florir as acácias;
a terra incha;
na derme da possível
geografia,
um frémito cinde
as estações do ano.

02 outubro, 2007

cão para lá do que chove em mim

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© Agosto, 2007

01 outubro, 2007

três mónadas

das 1194 que constituem esse meu velhinho livro de
Camilo José Cela, o fantástico "ofício de trevas 5",
pela segunda vez neste blogue.


90. não, já não restam ilhas por descobrir
será preciso um novo cataclismo para que
emirjam duas ou três ilhas minúsculas onde
se abriguem a fome e a sede de justiça a fome
e a sede de pão e água e a sede de liberdade

91. os flácidos falos servem de pasto às

gaivotas eis aqui o fim das espécies

92. não sonhes com remotas ilhas inacessíveis

limita-te a reconfortar-te pensando que deus
nunca soube que tu acreditavas nele