28 fevereiro, 2006
26 fevereiro, 2006
"ler e escrever"
Uma crónica do escritor duriense João de Araújo Correia,
escrita em Janeiro de 1962. Mestre de nós todos, nas
palavras de um mestre maior, Aquilino Ribeiro.
" Não falta por aí quem saiba escrever. Ler é que pouca
gente sabe. Para escrever, basta garatujar, com mais
correcção ou menos correcção, com a maior elegância ou
sem elegância nenhuma, o que se pretende. O escrever é
acto de egoísmo. É a eloquência do eu com asas. Postas a
voar sobre o papel, ninguém as agarra. É eloquente o cai-
xeiro que escreve à mãe, o soldado que escreve à namora-
da, a mulher que despedaça o coração com uma pena mo-
vida pela dor. Há pessoas estúpidas, que, postas a escre-
ver, em hora de aflição, causariam inveja a um Camilo.
Há até quem não saiba escrever e seja eloquente por in-
termédio da escrita. Há analfabetos que notam cartas
extraordinárias. Há versos de cavador escritos com a
enxada. E que versos! Naturais, fluentes, cândidos, tal e
qual versos de João de Deus.
Escrever é fácil. É o eu a falar. O ler é que é difícil. São os
outros que falam. Para os compreender, é indispensável
muita ciência, muita vontade e imensa boa-fé. É preciso
ler à letra, por baixo da letra e por cima da letra para
compreender. Corre-se o risco de ler rosado onde o autor
escreve azulado. Confundem-se as cores. Baralha-se o
arco-íris.
Ler é escutar - operação difícil. Se não escutarmos de boa
mente, que é que nos sucede? Onde nos deitam rosas, ai
de nós, que sentimos o rosto picado de ouriços. É o que
sucede a quem não sabe ler.
Razão tinha o Goethe. À medida que ia envelhecendo, ia
dizendo: cada vez me convenço mais dos requisitos que a
leitura exige.
Ler bem é privilégio. Ai de quem escreve, imaginando ser
compreendido. Semeia flores e colhe víboras."
escrita em Janeiro de 1962. Mestre de nós todos, nas
palavras de um mestre maior, Aquilino Ribeiro.
" Não falta por aí quem saiba escrever. Ler é que pouca
gente sabe. Para escrever, basta garatujar, com mais
correcção ou menos correcção, com a maior elegância ou
sem elegância nenhuma, o que se pretende. O escrever é
acto de egoísmo. É a eloquência do eu com asas. Postas a
voar sobre o papel, ninguém as agarra. É eloquente o cai-
xeiro que escreve à mãe, o soldado que escreve à namora-
da, a mulher que despedaça o coração com uma pena mo-
vida pela dor. Há pessoas estúpidas, que, postas a escre-
ver, em hora de aflição, causariam inveja a um Camilo.
Há até quem não saiba escrever e seja eloquente por in-
termédio da escrita. Há analfabetos que notam cartas
extraordinárias. Há versos de cavador escritos com a
enxada. E que versos! Naturais, fluentes, cândidos, tal e
qual versos de João de Deus.
Escrever é fácil. É o eu a falar. O ler é que é difícil. São os
outros que falam. Para os compreender, é indispensável
muita ciência, muita vontade e imensa boa-fé. É preciso
ler à letra, por baixo da letra e por cima da letra para
compreender. Corre-se o risco de ler rosado onde o autor
escreve azulado. Confundem-se as cores. Baralha-se o
arco-íris.
Ler é escutar - operação difícil. Se não escutarmos de boa
mente, que é que nos sucede? Onde nos deitam rosas, ai
de nós, que sentimos o rosto picado de ouriços. É o que
sucede a quem não sabe ler.
Razão tinha o Goethe. À medida que ia envelhecendo, ia
dizendo: cada vez me convenço mais dos requisitos que a
leitura exige.
Ler bem é privilégio. Ai de quem escreve, imaginando ser
compreendido. Semeia flores e colhe víboras."
25 fevereiro, 2006
24 fevereiro, 2006
crónica de uma tarde bizarra (de jorro, como se fosse num diário)
dia de folga. resolvo reviver velhos tempos. ir ao fantas.
ver filmes de seguida. duplas sessões. filmes raros, filmes
loucos, cinematografias exóticas, filmes do passado, autores
completamente desconhecidos, eu sei lá.
vou de metro. levo algum livro? o diário remendado do luiz
pacheco? não, não quero que me tomem por um intelectual arma-
do ao pingarelho. não quero parecer um libertino escondendo-se
em despovoadas sessões de obscuro, vagamente artístico,
soft-porno japonês. não, não levo. compro depois o público. não,
pior o remendo que o soneto. estou farto de notícias. levo o ipod?
não, também não, não quero ouvir música. já tenho vozes a mais
a bailar na cabeça. depois procurarei alguma coisa para ler.
chego cedo ao rivoli. a tempo da sessão das três.
a woman called abe sada, de noboru tanaka. um olhar intimista
da mulher desolada com a perda do seu amor. eros and thanatos.
a bizarra e extraordinária história verídica da "geisha" abe sada,
que em 1936 matou o seu amante e lhe cortou o pénis. um filme
anterior ao "o império dos sentidos" de nagima oshima, que se
baseia na mesma história. para mim um dos melhores filmes de
sempre.
faltam uns vinte minutos. tenho que matar o tempo. pego no
programa do festival e em tudo que é folheto cultural. esta minha
mania da papelada. encontro um último exemplar da revista de
bolso by.pass. em último caso, já terei que ler.
no hall de entrada encontro o neves. há anos que não o via. um
tipo que eu diria que até os óculos tem esbugalhados. e agora usa
rabo-de-cavalo. estás aqui a reportar, pergunto. sim, pá...respon-
de-me com um ar muito atarefado. mas estás mesmo a trabalhar
na organização do fantasporto? sim, claro, como sempre...eh pá,
há tantos anos que não via o neves que na verdade já não sabia o
que ele fazia!
entro no grande auditório. na ala esquerda, reservada à im-
prensa e aos participantes do festival, não está quase ninguém.
este fantas nem por sombras tem a aura dos tempos do velho
teatro carlos alberto.
atrás de mim, sentam-se uns poucos estudantes, entre rapazes
e raparigas. como é que vocês lá na mouraria, chamam aos
gunas?, ouço. é mitras. cá também dizemos mitras. também não
sabias o que era um trengo, pois não? um trengo é um totó. mas
trengo até pode ser dito numa boa. eu às vezes digo ao meu na-
morado, és um trengo! é carinhoso. depois ainda ouvi umas
coisas sobre festas trance. vá lá que se calaram quando escure-
ceu a sala. hora e meia depois, fim da sessão. na verdade, um
muito bom filme. animado, decido-me a comprar bilhete para a
sessão seguinte. angels guts - the darkest memories, de chusei
sone, também japonês. a história de uma estrela porno que vai
fazer sofrer um fotógrafo, obcecado por ela por tê-la visto em
"acção". acaba por convencê-la a posar para ele. polémico e pro-
vocador quanto baste, angel guts inverte os papéis sexuais,
assim rezava o programa.
falta ainda meia-hora. tempo talvez para lanchar. vou primeiro
a sampaio bruno procurar les inrockuptibles. não encontro, mas
trago de lá a mondo bizarre, de distribuição gratuita. resolvo
ainda ir olhar a praça. ir ver como estão as obras na praça e na
avenida. afinal, até parece estar a ficar mais bonito. como se po-
derá nomear os velhos do restelo aqui do porto? os velhos dos
aliados? os velhos aliados? para eles, talvez, os génios da casa
nunca fazem milagres. deixo-me de ideias provocadoras. ainda
me lançam uma fatwa.
entro no café de roma. atende-me uma rapariga simpática com
ar de alemã ou polaca. mas é bem portuguesa. aqueles folhados
são de quê? um é de chocolate, o outro penso que é de limão.
então quero o de limão, se for de limão. e uma meia-de-leite
morna e clarinha. enquanto espero, folheio a by.pass. encontro,
servindo de capa à agenda cultural, uma fotografia espectacular,
que já vira algures noutra publicação, do manuel jorge marmelo
a tomar um café, equipado a rigor com as cores do ramaldense.
o vermelho-vinho, o branco, o verde. não haverá outro assim no
mundo. o meu ramaldense. o querido clube dos meus primeiros
chutos a sério na bola. tenho que tentar arranjar uma camisola
como a dele. passo os olhos ainda, por uma entrevista a duas
jovens estrangeiras a residir no porto.
kristina, alemã, diz que gosta muito de portugal porque o tempo
passa devagar e as pessoas são muito simpáticas e abertas.
por sua vez, silvia, uma eslovaca, diz que gosta imenso da luz, das
cores das casas, dos azulejos. que é muito inspirador o oceano, as
ondas enormes. mas acha impressionante a diferença entre ricos
e pobres, os sem-abrigo a dormir na rua, bairros miseráveis e,
logo ao lado, pessoas a viver na foz, com dinheiro da família,
barco...que só conhecia essa realidade através das telenovelas
brasileiras que passavam no seu país. lá, durante o regime co-
munista, este tipo de diferença não era tão transparente, todos
tinham emprego e não havia pessoas sem-abrigo. hoje em dia, as
diferenças são já maiores porque o dinheiro foi começando a divi-
dir a sociedade.
chega à mesa o que pedi. ou melhor, o que não pedira. trincado o
folhado, descubro que afinal não é de limão mas de chocolate. e a
meia-de-leite vem quase a escaldar. mas não tenho pachorra
para reclamar, por causa do sorriso simpático da empregada.
volto ao rivoli. a sala está um pouco mais compostinha. umas
cerca de vinte almas penadas a mais que na sessão anterior.
apesar de interessante e muito bem feito, deste filme não rezará
a história. um dia vou procurar estudar o porquê dessa
obssessão fetichista dos japoneses por cuecas (quase sempre
brancas) de mulheres (quase sempre muito jovens).
saio para a rua, para o ar frio que sabe a puro. o lusco-fusco
começa a cobrir a cidade. na trindade, a estação está cheia. hora
de ponta. jovens cochicham estratégias para serem os primeiros
a entrar. lembro-me dos metros japoneses apinhados. dos
dramas das portas a fecharem. dos olhares mortiços ou insidiosos.
dos desejos recalcados. lembro-me de que filmes?
um casal de adolescentes namora apaixonadamente numas
escadas estreitas, quase a barrar o caminho a quem passa.
indiferentes a tudo beijam-se como num filme. será sempre
assim que vemos os beijos dos outros?
chega o metro. estranhamente, consigo um lugar sentado. a meu
lado, uma rapariga de pin brilhante no nariz está a ler um livro
do paulo coelho. não chego a descortinar o título. eu, que não
tenho nenhum livro, abro a mondo bizarre. ponho-me a ler uma
entrevista de david berman, o líder atormentado dos silver jews.
esse grupo de que a cristina, amiga de dias felizes, parece tanto
gostar. esse grupo que eu ainda não soube descobrir, não sei
bem porquê. david diz, que olhando para trás no tempo, nunca
pensou que chegassem tão longe. "nunca tive um plano. acho
divertido pensar que tudo tenha começado como um projecto de
arte conceptual, com um nome escolhido ao acaso e que, actual-
mente, faça tanto sentido. tudo se foi actualizando com os anos.
hoje sou um judeu com 38 anos e uma barba grisalha. até o
nome da banda se tornou realidade!".
o metro chega à estação de ramalde. as pessoas saem muito
calmamente, numa estranha falta de pressa. é já noite. dirijo-me
para o meu carro. passam por mim três ciganitas, a mais velha
está a contar qualquer coisa às outras, está a dizer qualquer
coisa como "ó chavalo, não sejas mentiroso!".
entro no carro. mal ligo o motor, ouço no rádio, "eu começaria
por dizer: minervino pietra".
demasiado acordado para o mundo, tudo me parece bizarro.
ver filmes de seguida. duplas sessões. filmes raros, filmes
loucos, cinematografias exóticas, filmes do passado, autores
completamente desconhecidos, eu sei lá.
vou de metro. levo algum livro? o diário remendado do luiz
pacheco? não, não quero que me tomem por um intelectual arma-
do ao pingarelho. não quero parecer um libertino escondendo-se
em despovoadas sessões de obscuro, vagamente artístico,
soft-porno japonês. não, não levo. compro depois o público. não,
pior o remendo que o soneto. estou farto de notícias. levo o ipod?
não, também não, não quero ouvir música. já tenho vozes a mais
a bailar na cabeça. depois procurarei alguma coisa para ler.
chego cedo ao rivoli. a tempo da sessão das três.
a woman called abe sada, de noboru tanaka. um olhar intimista
da mulher desolada com a perda do seu amor. eros and thanatos.
a bizarra e extraordinária história verídica da "geisha" abe sada,
que em 1936 matou o seu amante e lhe cortou o pénis. um filme
anterior ao "o império dos sentidos" de nagima oshima, que se
baseia na mesma história. para mim um dos melhores filmes de
sempre.
faltam uns vinte minutos. tenho que matar o tempo. pego no
programa do festival e em tudo que é folheto cultural. esta minha
mania da papelada. encontro um último exemplar da revista de
bolso by.pass. em último caso, já terei que ler.
no hall de entrada encontro o neves. há anos que não o via. um
tipo que eu diria que até os óculos tem esbugalhados. e agora usa
rabo-de-cavalo. estás aqui a reportar, pergunto. sim, pá...respon-
de-me com um ar muito atarefado. mas estás mesmo a trabalhar
na organização do fantasporto? sim, claro, como sempre...eh pá,
há tantos anos que não via o neves que na verdade já não sabia o
que ele fazia!
entro no grande auditório. na ala esquerda, reservada à im-
prensa e aos participantes do festival, não está quase ninguém.
este fantas nem por sombras tem a aura dos tempos do velho
teatro carlos alberto.
atrás de mim, sentam-se uns poucos estudantes, entre rapazes
e raparigas. como é que vocês lá na mouraria, chamam aos
gunas?, ouço. é mitras. cá também dizemos mitras. também não
sabias o que era um trengo, pois não? um trengo é um totó. mas
trengo até pode ser dito numa boa. eu às vezes digo ao meu na-
morado, és um trengo! é carinhoso. depois ainda ouvi umas
coisas sobre festas trance. vá lá que se calaram quando escure-
ceu a sala. hora e meia depois, fim da sessão. na verdade, um
muito bom filme. animado, decido-me a comprar bilhete para a
sessão seguinte. angels guts - the darkest memories, de chusei
sone, também japonês. a história de uma estrela porno que vai
fazer sofrer um fotógrafo, obcecado por ela por tê-la visto em
"acção". acaba por convencê-la a posar para ele. polémico e pro-
vocador quanto baste, angel guts inverte os papéis sexuais,
assim rezava o programa.
falta ainda meia-hora. tempo talvez para lanchar. vou primeiro
a sampaio bruno procurar les inrockuptibles. não encontro, mas
trago de lá a mondo bizarre, de distribuição gratuita. resolvo
ainda ir olhar a praça. ir ver como estão as obras na praça e na
avenida. afinal, até parece estar a ficar mais bonito. como se po-
derá nomear os velhos do restelo aqui do porto? os velhos dos
aliados? os velhos aliados? para eles, talvez, os génios da casa
nunca fazem milagres. deixo-me de ideias provocadoras. ainda
me lançam uma fatwa.
entro no café de roma. atende-me uma rapariga simpática com
ar de alemã ou polaca. mas é bem portuguesa. aqueles folhados
são de quê? um é de chocolate, o outro penso que é de limão.
então quero o de limão, se for de limão. e uma meia-de-leite
morna e clarinha. enquanto espero, folheio a by.pass. encontro,
servindo de capa à agenda cultural, uma fotografia espectacular,
que já vira algures noutra publicação, do manuel jorge marmelo
a tomar um café, equipado a rigor com as cores do ramaldense.
o vermelho-vinho, o branco, o verde. não haverá outro assim no
mundo. o meu ramaldense. o querido clube dos meus primeiros
chutos a sério na bola. tenho que tentar arranjar uma camisola
como a dele. passo os olhos ainda, por uma entrevista a duas
jovens estrangeiras a residir no porto.
kristina, alemã, diz que gosta muito de portugal porque o tempo
passa devagar e as pessoas são muito simpáticas e abertas.
por sua vez, silvia, uma eslovaca, diz que gosta imenso da luz, das
cores das casas, dos azulejos. que é muito inspirador o oceano, as
ondas enormes. mas acha impressionante a diferença entre ricos
e pobres, os sem-abrigo a dormir na rua, bairros miseráveis e,
logo ao lado, pessoas a viver na foz, com dinheiro da família,
barco...que só conhecia essa realidade através das telenovelas
brasileiras que passavam no seu país. lá, durante o regime co-
munista, este tipo de diferença não era tão transparente, todos
tinham emprego e não havia pessoas sem-abrigo. hoje em dia, as
diferenças são já maiores porque o dinheiro foi começando a divi-
dir a sociedade.
chega à mesa o que pedi. ou melhor, o que não pedira. trincado o
folhado, descubro que afinal não é de limão mas de chocolate. e a
meia-de-leite vem quase a escaldar. mas não tenho pachorra
para reclamar, por causa do sorriso simpático da empregada.
volto ao rivoli. a sala está um pouco mais compostinha. umas
cerca de vinte almas penadas a mais que na sessão anterior.
apesar de interessante e muito bem feito, deste filme não rezará
a história. um dia vou procurar estudar o porquê dessa
obssessão fetichista dos japoneses por cuecas (quase sempre
brancas) de mulheres (quase sempre muito jovens).
saio para a rua, para o ar frio que sabe a puro. o lusco-fusco
começa a cobrir a cidade. na trindade, a estação está cheia. hora
de ponta. jovens cochicham estratégias para serem os primeiros
a entrar. lembro-me dos metros japoneses apinhados. dos
dramas das portas a fecharem. dos olhares mortiços ou insidiosos.
dos desejos recalcados. lembro-me de que filmes?
um casal de adolescentes namora apaixonadamente numas
escadas estreitas, quase a barrar o caminho a quem passa.
indiferentes a tudo beijam-se como num filme. será sempre
assim que vemos os beijos dos outros?
chega o metro. estranhamente, consigo um lugar sentado. a meu
lado, uma rapariga de pin brilhante no nariz está a ler um livro
do paulo coelho. não chego a descortinar o título. eu, que não
tenho nenhum livro, abro a mondo bizarre. ponho-me a ler uma
entrevista de david berman, o líder atormentado dos silver jews.
esse grupo de que a cristina, amiga de dias felizes, parece tanto
gostar. esse grupo que eu ainda não soube descobrir, não sei
bem porquê. david diz, que olhando para trás no tempo, nunca
pensou que chegassem tão longe. "nunca tive um plano. acho
divertido pensar que tudo tenha começado como um projecto de
arte conceptual, com um nome escolhido ao acaso e que, actual-
mente, faça tanto sentido. tudo se foi actualizando com os anos.
hoje sou um judeu com 38 anos e uma barba grisalha. até o
nome da banda se tornou realidade!".
o metro chega à estação de ramalde. as pessoas saem muito
calmamente, numa estranha falta de pressa. é já noite. dirijo-me
para o meu carro. passam por mim três ciganitas, a mais velha
está a contar qualquer coisa às outras, está a dizer qualquer
coisa como "ó chavalo, não sejas mentiroso!".
entro no carro. mal ligo o motor, ouço no rádio, "eu começaria
por dizer: minervino pietra".
demasiado acordado para o mundo, tudo me parece bizarro.
23 fevereiro, 2006
22 fevereiro, 2006
à flor da minha pele
Ouvem-se os primeiros acordes de "Tatuagem" num violão, é
Chico Buarque quem está tocando, depois ouve-se a voz de
Caetano Veloso, "Quero ficar no teu corpo feito tatuagem...".
Caetano está sentado no chão, de pernas cruzadas, tem vestidos
uns calções muito justos e curtos como os dos jogadores de
futebol daquela época, e uma camisa vermelha aberta, muito
lustrosa, que lhe dá um toque algo efeminado.
A canção está agora a terminar, "...Que te rabisca o corpo todo/
mas não sentes", Caetano cala-se sorrindo de satisfação, Chico
desfere o acorde final, também sorridente, na sua camisa de
florzinhas discretas.
Chico - Lindo!...Agora eu é que quero cantar.
Passa o violão. Seus olhos azuis sorriem.
Chico - Faz "Esse Cara"...
Caetano ri. Depois começa a tocar. Chico canta, "Ah! Que esse
cara tem-me consumido...".
Breves mas eternos minutos depois, Caetano dá o acorde final,
enfatizando o gesto, sorrindo sempre.
Caetano - Jóia!
Olha depois para o chão. Cria-se um silêncio meio embaraçado.
Ouve-se um cão a ladrar. Caetano coça as costas por cima do
ombro.
Caetano - Eles não disseram nada de lá, não...E a gente...
Ri-se. Mais silêncio. O cão ainda a ladrar. Eles parecendo atra-
palhados, desarmados perante a estranheza da situação.
Chico - Como é que é, Roberto?! Estamos aflitos aqui...
Caetano - Eles não falam nada, a gente fica num suspense...
Parece que eles não gostaram! (rindo)
Chico começa a fumar um cigarro. Continua o silêncio.
Caetano - Qual é?! Foi lindo... (sempre a rir-se)
Chico - Eu gostei... (tossica)
Caetano - Eu gostei muito...Será que eles querem que a gente
converse mais, é?
O cão não parando de ladrar, e eles a cruzarem as palavras.
Caetano - Fala Roberto!
Chico - Pô, vou passar aqui a noite no show?!
Caetano - Eu acho...que ele não está mandando é mensagem de
lá...Eu acho que está tudo certo.
Chico - (a rir) Eu acho que ele está é gravando!
Caetano - É isso que eu estou dizendo!...
Ambos riem, divertidos.
Caetano - Eles querem que a gente converse...
Chico - Assim não vale...
Caetano - Não, assim é loucura!
Mais risos. Ao longe, o ladrar intermitente do cão.
Caetano - É...ele sabe o que é difícil a gente conversar...
Esquecem a estranheza do momento, o embaraço de suporem
estar a ser filmados quando não seria já suposto, tentam recu-
perar a conversa, num tom natural.
Caetano - Mas é o negócio que eu estava dizendo antes... Que a
gente faz...por exemplo, eu cantei "Tatuagem", depois...
Chico ouve atentamente.
Caetano - Quer dizer...para falar com qualquer conversa fica
meio supérflua, né?
Chico a olhar os gestos que sublinhavam as palavras de Caetano,
ali a uns dois metros dele, sentado no meio do tapete da sala.
Caetano - A gente cantou "Tatuagem" e "Esse cara"...as outras
conversas ficaram, né?...
Chico - É...
Caetano - Porque tem uma...uma letra no feminino sua e outra
no feminino minha; são...são conversas assim que a gente nem...
Um fade-out a negro fecha a cena, retomando-os já a interpretar
"Sem Fantasia".
De novo, Chico no violão. Caetano canta "Vem, meu menino
vadio/Vem, sem mentir pra você..."
A meio, começam a cantar juntos, cúmplices, harmoniosos,
felizes, assim em crescendo até ao fim da música, "...Eu quero a
prenda imensa/Dos carinhos teus".
Dois homens tão geniais.
(tentativa de reprodução fiel dos diálogos entre Chico e Caetano,
num comovente e inusitado encontro musical, filmado concerteza
nos anos 70, agora disponível em dvd, numa série dedicada à obra
de Chico Buarque.)
Chico Buarque quem está tocando, depois ouve-se a voz de
Caetano Veloso, "Quero ficar no teu corpo feito tatuagem...".
Caetano está sentado no chão, de pernas cruzadas, tem vestidos
uns calções muito justos e curtos como os dos jogadores de
futebol daquela época, e uma camisa vermelha aberta, muito
lustrosa, que lhe dá um toque algo efeminado.
A canção está agora a terminar, "...Que te rabisca o corpo todo/
mas não sentes", Caetano cala-se sorrindo de satisfação, Chico
desfere o acorde final, também sorridente, na sua camisa de
florzinhas discretas.
Chico - Lindo!...Agora eu é que quero cantar.
Passa o violão. Seus olhos azuis sorriem.
Chico - Faz "Esse Cara"...
Caetano ri. Depois começa a tocar. Chico canta, "Ah! Que esse
cara tem-me consumido...".
Breves mas eternos minutos depois, Caetano dá o acorde final,
enfatizando o gesto, sorrindo sempre.
Caetano - Jóia!
Olha depois para o chão. Cria-se um silêncio meio embaraçado.
Ouve-se um cão a ladrar. Caetano coça as costas por cima do
ombro.
Caetano - Eles não disseram nada de lá, não...E a gente...
Ri-se. Mais silêncio. O cão ainda a ladrar. Eles parecendo atra-
palhados, desarmados perante a estranheza da situação.
Chico - Como é que é, Roberto?! Estamos aflitos aqui...
Caetano - Eles não falam nada, a gente fica num suspense...
Parece que eles não gostaram! (rindo)
Chico começa a fumar um cigarro. Continua o silêncio.
Caetano - Qual é?! Foi lindo... (sempre a rir-se)
Chico - Eu gostei... (tossica)
Caetano - Eu gostei muito...Será que eles querem que a gente
converse mais, é?
O cão não parando de ladrar, e eles a cruzarem as palavras.
Caetano - Fala Roberto!
Chico - Pô, vou passar aqui a noite no show?!
Caetano - Eu acho...que ele não está mandando é mensagem de
lá...Eu acho que está tudo certo.
Chico - (a rir) Eu acho que ele está é gravando!
Caetano - É isso que eu estou dizendo!...
Ambos riem, divertidos.
Caetano - Eles querem que a gente converse...
Chico - Assim não vale...
Caetano - Não, assim é loucura!
Mais risos. Ao longe, o ladrar intermitente do cão.
Caetano - É...ele sabe o que é difícil a gente conversar...
Esquecem a estranheza do momento, o embaraço de suporem
estar a ser filmados quando não seria já suposto, tentam recu-
perar a conversa, num tom natural.
Caetano - Mas é o negócio que eu estava dizendo antes... Que a
gente faz...por exemplo, eu cantei "Tatuagem", depois...
Chico ouve atentamente.
Caetano - Quer dizer...para falar com qualquer conversa fica
meio supérflua, né?
Chico a olhar os gestos que sublinhavam as palavras de Caetano,
ali a uns dois metros dele, sentado no meio do tapete da sala.
Caetano - A gente cantou "Tatuagem" e "Esse cara"...as outras
conversas ficaram, né?...
Chico - É...
Caetano - Porque tem uma...uma letra no feminino sua e outra
no feminino minha; são...são conversas assim que a gente nem...
Um fade-out a negro fecha a cena, retomando-os já a interpretar
"Sem Fantasia".
De novo, Chico no violão. Caetano canta "Vem, meu menino
vadio/Vem, sem mentir pra você..."
A meio, começam a cantar juntos, cúmplices, harmoniosos,
felizes, assim em crescendo até ao fim da música, "...Eu quero a
prenda imensa/Dos carinhos teus".
Dois homens tão geniais.
(tentativa de reprodução fiel dos diálogos entre Chico e Caetano,
num comovente e inusitado encontro musical, filmado concerteza
nos anos 70, agora disponível em dvd, numa série dedicada à obra
de Chico Buarque.)
21 fevereiro, 2006
petit divertissement (à moda do porto)
joaninha boa, boa!
c'o vento do amor
não traz coisa voa!
© Porto, 2006
c'o vento do amor
não traz coisa voa!
© Porto, 2006
20 fevereiro, 2006
um caso nosso
Regina Guimarães e Saguenail: um casal, um caso único no
panorama cinematográfico português.
Há pouca gente assim com tal amor ao cinema.
Há muito poucos que, como eles, tenham visto e tenham
pensado o cinema português. O tenham provocado.
O cinema aqui da terrinha.
O cinema grande de um país pequeno?
O pobre cinema de um país sem memória?
Um cinema de génios solitários de um país pobre de tudo?
Pois eles resolveram meter literalmente as mãos à obra (às
obras), e fizeram assim, em seis capítulos, um "ensaio de crí-
tica metacinematográfica sobre o cinema português no últi-
mo quartel do século XX". Revelando Portugal pelos filmes que
cá se fizeram, que por cá já não se vai podendo fazer.
Apesar do incentivo e apoio da Fundação Calouste Gulbenkian,
trabalharam com imensas dificuldades que são devidas à quase
total invisibilidade do cinema português, pois a maior parte dos
filmes portugueses não está acessível ou disponível, qualquer
que seja o seu suporte; e ainda devido à complexa questão dos
direitos autorais.
Tiveram que recorrer à piratagem de cassettes VHS...
Consideram, por isso, estes seus seis filmes apenas, e ainda,
como maquettes que poderão, talvez um dia, "ser transpostas
para um suporte minimamente digno e fidedigno".
Ontem, à tarde, estavam poucas pessoas em Serralves. No
sábado, teriam estado menos ainda. Pouco interesse ou nenhum
dos media. Tão triste. Tão imerecido.
Cidade tão injusta para com os seus.
Enquanto isso, todas as tv's portuguesas, tão pouco lúcidas,
seguiam horas intermináveis em directo a trasladação do corpo
de Lúcia, de Coimbra para Fátima.
Trinta anos depois da revolução, parece não ter havido
revolução alguma.
País tão pequeno.
© 2006
panorama cinematográfico português.
Há pouca gente assim com tal amor ao cinema.
Há muito poucos que, como eles, tenham visto e tenham
pensado o cinema português. O tenham provocado.
O cinema aqui da terrinha.
O cinema grande de um país pequeno?
O pobre cinema de um país sem memória?
Um cinema de génios solitários de um país pobre de tudo?
Pois eles resolveram meter literalmente as mãos à obra (às
obras), e fizeram assim, em seis capítulos, um "ensaio de crí-
tica metacinematográfica sobre o cinema português no últi-
mo quartel do século XX". Revelando Portugal pelos filmes que
cá se fizeram, que por cá já não se vai podendo fazer.
Apesar do incentivo e apoio da Fundação Calouste Gulbenkian,
trabalharam com imensas dificuldades que são devidas à quase
total invisibilidade do cinema português, pois a maior parte dos
filmes portugueses não está acessível ou disponível, qualquer
que seja o seu suporte; e ainda devido à complexa questão dos
direitos autorais.
Tiveram que recorrer à piratagem de cassettes VHS...
Consideram, por isso, estes seus seis filmes apenas, e ainda,
como maquettes que poderão, talvez um dia, "ser transpostas
para um suporte minimamente digno e fidedigno".
Ontem, à tarde, estavam poucas pessoas em Serralves. No
sábado, teriam estado menos ainda. Pouco interesse ou nenhum
dos media. Tão triste. Tão imerecido.
Cidade tão injusta para com os seus.
Enquanto isso, todas as tv's portuguesas, tão pouco lúcidas,
seguiam horas intermináveis em directo a trasladação do corpo
de Lúcia, de Coimbra para Fátima.
Trinta anos depois da revolução, parece não ter havido
revolução alguma.
País tão pequeno.
© 2006
19 fevereiro, 2006
18 fevereiro, 2006
"18 de fevereiro"
mais um poema de Ana Cristina César, de " A Teus Pés"
"Me exercitei muito em escritos burocráticos, cartas de
recomendação, anteprojectos, consultas. O irremovível trabalho
da redacção técnica. Somente a dicção nobre poderia a tais
alturas consolar-me. Mas não o ritmo seco dos diários
que me exigem!"
"Me exercitei muito em escritos burocráticos, cartas de
recomendação, anteprojectos, consultas. O irremovível trabalho
da redacção técnica. Somente a dicção nobre poderia a tais
alturas consolar-me. Mas não o ritmo seco dos diários
que me exigem!"
17 fevereiro, 2006
life is but a dream
eu sei que lá vai o tempo em que usava gabardines mesmo sem
chuva, mesmo apesar das primaveras radiosas.
esse tempo das camisolas estampadas com ícones do rock,
dos crachás com o nome amado das nossas bandas preferidas.
já lá vai esse tempo suspenso do tempo sem futuro.
essa espécie de eternidade tatuada na pele de todas as emoções.
essa pátria infinda e ambígua que é a adolescência.
esse tempo em que me revia na tribo dos urbano-depressivos.
esse tempo sombrio de secretas e infelizes paixões.
eu sei disso tudo. e por causa disso, hoje, o céu vai cair-me em
cima da cabeça. não me posso perdoar. nem adianta chorar.
como foi possível ter sido tão negligente e não ter, mais uma vez,
conseguido o bilhete para ver BAUHAUS?
© 2006
chuva, mesmo apesar das primaveras radiosas.
esse tempo das camisolas estampadas com ícones do rock,
dos crachás com o nome amado das nossas bandas preferidas.
já lá vai esse tempo suspenso do tempo sem futuro.
essa espécie de eternidade tatuada na pele de todas as emoções.
essa pátria infinda e ambígua que é a adolescência.
esse tempo em que me revia na tribo dos urbano-depressivos.
esse tempo sombrio de secretas e infelizes paixões.
eu sei disso tudo. e por causa disso, hoje, o céu vai cair-me em
cima da cabeça. não me posso perdoar. nem adianta chorar.
como foi possível ter sido tão negligente e não ter, mais uma vez,
conseguido o bilhete para ver BAUHAUS?
© 2006
16 fevereiro, 2006
15 fevereiro, 2006
Corona, de Paul Celan
"O outono come da minha mão a sua folha: somos amigos.
Tiramos às nozes a casca do tempo e ensinamo-lo a andar:
o tempo regressa de novo à casca.
No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala verdade.
O meu olhar desce até ao sexo dos amantes:
olhamo-nos,
dizemos algo de escuro,
amamo-nos como papoila e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
ou o mar no brilho-sangue da lua.
Ficamos abraçados à janela, olham para nós da rua:
é tempo que se saiba!
É tempo que a pedra se decida a florir,
que ao desassossego palpite um coração.
É tempo que seja tempo.
É tempo."
da antologia poética "Sete Rosas Mais Tarde", tradução de
João Barrento e Y.K. Centeno
Tiramos às nozes a casca do tempo e ensinamo-lo a andar:
o tempo regressa de novo à casca.
No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala verdade.
O meu olhar desce até ao sexo dos amantes:
olhamo-nos,
dizemos algo de escuro,
amamo-nos como papoila e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
ou o mar no brilho-sangue da lua.
Ficamos abraçados à janela, olham para nós da rua:
é tempo que se saiba!
É tempo que a pedra se decida a florir,
que ao desassossego palpite um coração.
É tempo que seja tempo.
É tempo."
da antologia poética "Sete Rosas Mais Tarde", tradução de
João Barrento e Y.K. Centeno
14 fevereiro, 2006
Portugal e Brasil, por Agostinho da Silva
perdoem, mas a citação vai ser longa.
Mestre Agostinho o merece.
(especialmente para Moloi, meu agitador-mor.)
" Tanto quanto é possível sabê-lo, pela documentação histórica até agora
conhecida e por vestígios actuais, caracterizou-se o povo português, na
época em que mais livremente se pôde desenvolver, pelo sentido colectivis-
ta da sua economia, pela liberdade das suas instituições políticas, pelo cur-
so aberto que dava à sua intuição e ao seu sentimento religioso no que res-
peitava a doutrinas e formas de culto. Com todo o exagero, ou, antes, toda
a imprecisão que o generalizar acarreta consigo, pode dizer-se que o povo
de Portugal tendia a ser contra toda a forma de economia, que, pela con-
corrência e pelo afã do lucro,destrói em nós a humanidade; contra todas as
formas de governo em que se pretende modelar os outros e não apenas
ajudá-los a ser o que são na sua forma mais perfeita e criadora; contra to-
das as fórmulas religiosas em que centralismo, rito e doutrinas,que são mais
palavras do que actos e tendem a sufocar a chama de amor, de busca de
unidade pessoal e universal e de sentido da totalidade do mundo, sem a
qual a religião é apenas meio de vida, administração e política de obscuran-
tismo. Colectivista sempre que o podia, nos comuns da agricultura e da
pastorícia ou nas campanhas do mar; republicano e livre nas instituições
municipais, de que o rei era o coordenador, tão sujeito às leis públicas
como o mais humilde dos cidadãos; sem barreiras ainda no manifestar das
suas aspirações religiosas - tal era o povonos fins da Idade Média, quando
já, no entanto, três outras formas, não direi de ser, mas de ter, o ameaça-
vam dos lados da Europa, nome que dou a toda a terra para norte dos
limites da oliveira e à qual se deveria estender o dito popular que atribui aos
nossos vizinhos espanhóis, nome errado em vez de castelhanos, as origens
dos maus ventos e dos maus casamentos. Essas tais três outras formas, cujo
aparecimento era indispensável para o desenvolvimento material da Huma-
nidade, mas que lhe trariam graves consequências para o seu desenvolvi-
mento espiritual, eram o capitalismo comercial de origens alemãs e italianas,
sem que italiano aqui signifique mediterrâneo; o cesarismo jurídico romano,
que se traduz pelo absolutismo real e a decadência dos municípios; e o
outro cesarismo, o religioso, que se formula no Concílio de Trento e de que
só em nossos tempos se vai libertando o Vaticano.
Lançado na empresa dos Descobrimentos, que, por evidentemente não
ser realizada pelos anjos, estava sujeita a todas as tentações humanas, no-
meadamente à do enriquecimento fácil, à do comando por um ou poucos e
à do baptismo em massa, Portugal perde o carácter que o teria logo leva-
do, então, à cabeceira do mundo, perde o Paraíso que tinha construído e
que a nossa época, apesar das apareências contrárias, torna cada vez mais
de reconquista possível, e lança-o ao domínio dos mitos, e faz sebastianis-
mo, mas com um grande mérito que outros povos não têm: o de manter a
esperança de que o desenvolvimento técnico não nos faça perder a alma,
antes a livre do mais tentador dos demónios, que é a miséria, com todo o
seu cortejo diabólico das humilhações e desesperos. É exactamente por
isso que hoje, a par de todos os esforços que faça pelo seu progresso
económico, cuja meta deve ser a da abundância de tudo para todos,
Portugal tem o dever máximo de reensinar ao mundo, que tanto andou e
anda por outros caminhos, que não há homem verdadeiro se as suas mãos
não são livres e são para o trabalho de produzir, se a sua cabeça não é
livre para que por ela se governe, se não é livre o seu coração para que
nele Deus resplenda. Portugal nunca reinará pelo seu aço, pelos seus
bancos ou pelo seu absolutismo, pois outros mais poderosos vão na sua
dianteira. Mas que seja arauto da liberdade e se mostre como povo que
se desagrilhoa de todas as cadeias e os outros o seguirão com a um
pastor - pastor uno de um rebanho uno.
Pois houve gente no Portugal do século XVI que sonhou o grande sonho
e não se quis render ao que eram as realidades portuguesas a partir de
D. João II, que tantos historiadores da mesma igualha olham ainda como
a um grande rei, quando nele a boa cepa portuguesa se entortou para
muito tempo em maquiavelismos que nem inteligentes foram, como o do
florentino. Foram esses portugueses, os que não se resignaram ao que
tinham em volta e sobretudo em cima, tais como aqueles que hoje se
dirigem aos ilusórios salários de Mercado Comum, que abandonaram
um Portugal que lhes não servia nem se deixava servir por eles e partiram
para o Brasil, para as terras novas de gente nova, e tudo fizeram aí, longe
dos monopólios, dos reis e dostridentinos, a fim de instaurar uma grande
nação que conservasse as liberdades populares, desse azo a colectivismos
económicos e soltasse as imaginações para a construção religiosa. Os
europeus ficaram nos seus gabinetes da Europa, escrevendo utopias que
a nada levaram. Os portugueses, com sentido das realidades e da acção,
tentaram, e em grande parte o conseguiram, levar para além dos mares o
Portugal autêntico que era o seu. (...)"
publicado em 19 de Março de 1971
Mestre Agostinho o merece.
(especialmente para Moloi, meu agitador-mor.)
" Tanto quanto é possível sabê-lo, pela documentação histórica até agora
conhecida e por vestígios actuais, caracterizou-se o povo português, na
época em que mais livremente se pôde desenvolver, pelo sentido colectivis-
ta da sua economia, pela liberdade das suas instituições políticas, pelo cur-
so aberto que dava à sua intuição e ao seu sentimento religioso no que res-
peitava a doutrinas e formas de culto. Com todo o exagero, ou, antes, toda
a imprecisão que o generalizar acarreta consigo, pode dizer-se que o povo
de Portugal tendia a ser contra toda a forma de economia, que, pela con-
corrência e pelo afã do lucro,destrói em nós a humanidade; contra todas as
formas de governo em que se pretende modelar os outros e não apenas
ajudá-los a ser o que são na sua forma mais perfeita e criadora; contra to-
das as fórmulas religiosas em que centralismo, rito e doutrinas,que são mais
palavras do que actos e tendem a sufocar a chama de amor, de busca de
unidade pessoal e universal e de sentido da totalidade do mundo, sem a
qual a religião é apenas meio de vida, administração e política de obscuran-
tismo. Colectivista sempre que o podia, nos comuns da agricultura e da
pastorícia ou nas campanhas do mar; republicano e livre nas instituições
municipais, de que o rei era o coordenador, tão sujeito às leis públicas
como o mais humilde dos cidadãos; sem barreiras ainda no manifestar das
suas aspirações religiosas - tal era o povonos fins da Idade Média, quando
já, no entanto, três outras formas, não direi de ser, mas de ter, o ameaça-
vam dos lados da Europa, nome que dou a toda a terra para norte dos
limites da oliveira e à qual se deveria estender o dito popular que atribui aos
nossos vizinhos espanhóis, nome errado em vez de castelhanos, as origens
dos maus ventos e dos maus casamentos. Essas tais três outras formas, cujo
aparecimento era indispensável para o desenvolvimento material da Huma-
nidade, mas que lhe trariam graves consequências para o seu desenvolvi-
mento espiritual, eram o capitalismo comercial de origens alemãs e italianas,
sem que italiano aqui signifique mediterrâneo; o cesarismo jurídico romano,
que se traduz pelo absolutismo real e a decadência dos municípios; e o
outro cesarismo, o religioso, que se formula no Concílio de Trento e de que
só em nossos tempos se vai libertando o Vaticano.
Lançado na empresa dos Descobrimentos, que, por evidentemente não
ser realizada pelos anjos, estava sujeita a todas as tentações humanas, no-
meadamente à do enriquecimento fácil, à do comando por um ou poucos e
à do baptismo em massa, Portugal perde o carácter que o teria logo leva-
do, então, à cabeceira do mundo, perde o Paraíso que tinha construído e
que a nossa época, apesar das apareências contrárias, torna cada vez mais
de reconquista possível, e lança-o ao domínio dos mitos, e faz sebastianis-
mo, mas com um grande mérito que outros povos não têm: o de manter a
esperança de que o desenvolvimento técnico não nos faça perder a alma,
antes a livre do mais tentador dos demónios, que é a miséria, com todo o
seu cortejo diabólico das humilhações e desesperos. É exactamente por
isso que hoje, a par de todos os esforços que faça pelo seu progresso
económico, cuja meta deve ser a da abundância de tudo para todos,
Portugal tem o dever máximo de reensinar ao mundo, que tanto andou e
anda por outros caminhos, que não há homem verdadeiro se as suas mãos
não são livres e são para o trabalho de produzir, se a sua cabeça não é
livre para que por ela se governe, se não é livre o seu coração para que
nele Deus resplenda. Portugal nunca reinará pelo seu aço, pelos seus
bancos ou pelo seu absolutismo, pois outros mais poderosos vão na sua
dianteira. Mas que seja arauto da liberdade e se mostre como povo que
se desagrilhoa de todas as cadeias e os outros o seguirão com a um
pastor - pastor uno de um rebanho uno.
Pois houve gente no Portugal do século XVI que sonhou o grande sonho
e não se quis render ao que eram as realidades portuguesas a partir de
D. João II, que tantos historiadores da mesma igualha olham ainda como
a um grande rei, quando nele a boa cepa portuguesa se entortou para
muito tempo em maquiavelismos que nem inteligentes foram, como o do
florentino. Foram esses portugueses, os que não se resignaram ao que
tinham em volta e sobretudo em cima, tais como aqueles que hoje se
dirigem aos ilusórios salários de Mercado Comum, que abandonaram
um Portugal que lhes não servia nem se deixava servir por eles e partiram
para o Brasil, para as terras novas de gente nova, e tudo fizeram aí, longe
dos monopólios, dos reis e dostridentinos, a fim de instaurar uma grande
nação que conservasse as liberdades populares, desse azo a colectivismos
económicos e soltasse as imaginações para a construção religiosa. Os
europeus ficaram nos seus gabinetes da Europa, escrevendo utopias que
a nada levaram. Os portugueses, com sentido das realidades e da acção,
tentaram, e em grande parte o conseguiram, levar para além dos mares o
Portugal autêntico que era o seu. (...)"
publicado em 19 de Março de 1971
13 fevereiro, 2006
rui nunes
um escritor de feridas palavras. ferinas.
um mensageiro em nada diferido.
" Nunca se escapa da pátria, das muitas pátrias que há: da
pátria que é a língua, da pátria que é a terra, da pátria que
é a família, da pátria que é o passado."
excerto da entrevista do escritor português Rui Nunes, actual-
mente a residir a maior parte do tempo na Áustria, ao "Mil Folhas"
de 11/janeiro/06.
um mensageiro em nada diferido.
" Nunca se escapa da pátria, das muitas pátrias que há: da
pátria que é a língua, da pátria que é a terra, da pátria que
é a família, da pátria que é o passado."
excerto da entrevista do escritor português Rui Nunes, actual-
mente a residir a maior parte do tempo na Áustria, ao "Mil Folhas"
de 11/janeiro/06.
12 fevereiro, 2006
11 fevereiro, 2006
as águas magoadas
corpo onde crescem
as águas magoadas
mãos que ostentam
sonhos tontos ou vazios
asfixia por palavras
fúteis ante o silêncio
as águas magoadas
mãos que ostentam
sonhos tontos ou vazios
asfixia por palavras
fúteis ante o silêncio
10 fevereiro, 2006
SÊ QUEM ME LÊ, um poema de José Agostinho Baptista
"
Sê quem me lê,
decifrador de enigmas.
Folheia-me como a uma árvore de folha soltas,
se é outono.
Todas as palavras mentem, no interior da sua
obscuridade.
Nada te prende ao verso,
aos seus ínvios caminhos,
às suas seduções de sábia prostituta.
Que não cedas a essa luz de remotas lantejoulas,
às flores vivas que segura.
No intervalo das fontes,
nas imediações do rio, temível é a palavra, a
cólera de deus.
Se desceres os últimos degraus,
escutarás essa voz que ecoa nos labirintos e depois
só o fio através das cisternas -
ou talvez nas montanhas de fogo onde não suportarás
a claridade,
queimada de presságios.
Não oiças, não olhes:
ferem-te as palavras do deus e as suas garras de tigre
nos muros de um coração que não o teu:
devorado já pelas páginas que lês,
desprendendo-se das folhas e do outono,
batendo devagar. "
© 2006
Sê quem me lê,
decifrador de enigmas.
Folheia-me como a uma árvore de folha soltas,
se é outono.
Todas as palavras mentem, no interior da sua
obscuridade.
Nada te prende ao verso,
aos seus ínvios caminhos,
às suas seduções de sábia prostituta.
Que não cedas a essa luz de remotas lantejoulas,
às flores vivas que segura.
No intervalo das fontes,
nas imediações do rio, temível é a palavra, a
cólera de deus.
Se desceres os últimos degraus,
escutarás essa voz que ecoa nos labirintos e depois
só o fio através das cisternas -
ou talvez nas montanhas de fogo onde não suportarás
a claridade,
queimada de presságios.
Não oiças, não olhes:
ferem-te as palavras do deus e as suas garras de tigre
nos muros de um coração que não o teu:
devorado já pelas páginas que lês,
desprendendo-se das folhas e do outono,
batendo devagar. "
© 2006
09 fevereiro, 2006
08 fevereiro, 2006
o mundo está perigoso
que nem me apetece nada esta coisa dos blogues...
inútil me sinto, cansado de ler posts de todas as
cores e matizes sobre o presente ou o futuro choque das
civilizações, dos mil e um pérfidos e anónimos
comentários, das incoerências da esquerda fracturante...
a história deste longo século a começar. esta luta,
esta eterna luta entre a luz e as trevas.
como se este novo século, concomitantemente, estivesse
a ser habitado, revisitado, devorado por todos os
séculos passados...
quase que apetece acreditar nessa miraculosa visão de
que alguém extraplanetário virá para salvar isto... que
nos livre deste mundo, que nos leve para outra superior
dimensão...
que o mundo todo se foda!
poderei gritar assim??
(valha-me este santo blogger)
e como poder condenar os que não acreditam em nada?
os que não acreditam em ninguém?
e como poder julgar os niilistas? os descrentes de todas
as espécies e feitios?
como poder odiar inocentes? ou até mesmo ignorantes?
terei mesmo que saber quem era o profeta? que não será
nunca possível figurá-lo?
a minha centenária bisavó, minhota iletrada que dizia
"carelho" a torto e a direito, por tudo ou por nada,
morreu certamente sem saber quem ele era.
nem de cristo saberia ela em profundidade, ainda que
temente a um deus seu pai-todo-poderoso(como lho ensi-
ram), isso seria.
quantos milhões não serão também assim em todo o nosso
mundo chamado ocidental?
a minha filha não sabe ainda bem quem é, o que é deus.
andará às voltas com essa ideia.
terá ganho a noção de que viverá algures lá em cima,
no céu enorme, a olhar por todos nós.
algum ser bom a quem se poderá contar incontáveis
segredos.
mas creio que desconfia que ele terá os mesmos "defeitos
de fabrico" de nós, os humanos...
vou pedir-lhe para que me faça um desenho de deus.
o sorriso de deus. ou um deus com um sorriso.
não. nada disso.
vou perguntar-lhe se ela conseguirá fazer um desenho
de deus. vou pedir-lhe que o tente desenhar.
com toda a liberdade das crianças.
com toda a liberdade da inocência.
inútil me sinto, cansado de ler posts de todas as
cores e matizes sobre o presente ou o futuro choque das
civilizações, dos mil e um pérfidos e anónimos
comentários, das incoerências da esquerda fracturante...
a história deste longo século a começar. esta luta,
esta eterna luta entre a luz e as trevas.
como se este novo século, concomitantemente, estivesse
a ser habitado, revisitado, devorado por todos os
séculos passados...
quase que apetece acreditar nessa miraculosa visão de
que alguém extraplanetário virá para salvar isto... que
nos livre deste mundo, que nos leve para outra superior
dimensão...
que o mundo todo se foda!
poderei gritar assim??
(valha-me este santo blogger)
e como poder condenar os que não acreditam em nada?
os que não acreditam em ninguém?
e como poder julgar os niilistas? os descrentes de todas
as espécies e feitios?
como poder odiar inocentes? ou até mesmo ignorantes?
terei mesmo que saber quem era o profeta? que não será
nunca possível figurá-lo?
a minha centenária bisavó, minhota iletrada que dizia
"carelho" a torto e a direito, por tudo ou por nada,
morreu certamente sem saber quem ele era.
nem de cristo saberia ela em profundidade, ainda que
temente a um deus seu pai-todo-poderoso(como lho ensi-
ram), isso seria.
quantos milhões não serão também assim em todo o nosso
mundo chamado ocidental?
a minha filha não sabe ainda bem quem é, o que é deus.
andará às voltas com essa ideia.
terá ganho a noção de que viverá algures lá em cima,
no céu enorme, a olhar por todos nós.
algum ser bom a quem se poderá contar incontáveis
segredos.
mas creio que desconfia que ele terá os mesmos "defeitos
de fabrico" de nós, os humanos...
vou pedir-lhe para que me faça um desenho de deus.
o sorriso de deus. ou um deus com um sorriso.
não. nada disso.
vou perguntar-lhe se ela conseguirá fazer um desenho
de deus. vou pedir-lhe que o tente desenhar.
com toda a liberdade das crianças.
com toda a liberdade da inocência.
07 fevereiro, 2006
Encolhimento
Pousou
a mão pobre
sobre a loucura
silente branca da estátua
Ousou
num beijo a miragem
da imagem sua
Usou
da fluência da lua
anichando pétalas na viagem
das palavras excitada
Sou
o corpo iludindo o logro
que do a mor te
ergo
fogo divino
Ou
de um desejo apenas cego
O
meu destino
a mão pobre
sobre a loucura
silente branca da estátua
Ousou
num beijo a miragem
da imagem sua
Usou
da fluência da lua
anichando pétalas na viagem
das palavras excitada
Sou
o corpo iludindo o logro
que do a mor te
ergo
fogo divino
Ou
de um desejo apenas cego
O
meu destino
06 fevereiro, 2006
05 fevereiro, 2006
04 fevereiro, 2006
no coração de um rio mas também de um porto
"O tiroteio começou antes das seis da tarde. Desci até à esquina
pra comprar cigarros. Quando voltava, um zelador de edifício
estava apavorado. Me mostrou uma bala no chão e o quase
orifício no portão metálico do prédio. O tiro veio lá do morro."
Palavras de Moloi. Nada de ficção. No Rio, às vezes, só deve
apetecer chorar.
(still-frame de "Caetano Veloso Prophecy's", um filminho de Moloi)
Seis da tarde. Bem perto donde Moloi mora no Porto. Muita gente
na rua. "Estava muito trânsito e parou tudo. As pessoas parece
que ficaram em suspenso, sem acreditar no que estavam a ver.
Três encapuzados, armados, a correr pelo meio da rua. Só
quando entraram no carro e arrancaram a grande velocidade é
que nos apercebemos do que tínhamos visto.", disse o dono de
um café ali perto. "Tinha ido à montra buscar umas peças e só
por um milagre não fui atingida.", disse, por sua vez, a proprie-
tária da loja atingida.
Seis da tarde. A azáfama habitual de um fim de tarde nessa zona
da cidade. Gente às compras. Aos saldos. O país que parece
estar ele próprio em saldos. Tanta arma que por aí anda sem
licença. Liquidação de stocks, podia-se ler na montra. Qualquer
dia somos nós que estamos liquidados. O Porto já foi melhor porto
de abrigo.
( Perdoem-me a raivazinha, os laivozinhos de populismo,
porventura, o efeito fácil, mas é que as minhas filhas bem
podiam estar a passear por ali. No fundo, qualquer um de nós.)
(palavras em discurso directo retiradas do "Jornal de Notícias" e as imagens da SIC)
pra comprar cigarros. Quando voltava, um zelador de edifício
estava apavorado. Me mostrou uma bala no chão e o quase
orifício no portão metálico do prédio. O tiro veio lá do morro."
Palavras de Moloi. Nada de ficção. No Rio, às vezes, só deve
apetecer chorar.
(still-frame de "Caetano Veloso Prophecy's", um filminho de Moloi)
Seis da tarde. Bem perto donde Moloi mora no Porto. Muita gente
na rua. "Estava muito trânsito e parou tudo. As pessoas parece
que ficaram em suspenso, sem acreditar no que estavam a ver.
Três encapuzados, armados, a correr pelo meio da rua. Só
quando entraram no carro e arrancaram a grande velocidade é
que nos apercebemos do que tínhamos visto.", disse o dono de
um café ali perto. "Tinha ido à montra buscar umas peças e só
por um milagre não fui atingida.", disse, por sua vez, a proprie-
tária da loja atingida.
Seis da tarde. A azáfama habitual de um fim de tarde nessa zona
da cidade. Gente às compras. Aos saldos. O país que parece
estar ele próprio em saldos. Tanta arma que por aí anda sem
licença. Liquidação de stocks, podia-se ler na montra. Qualquer
dia somos nós que estamos liquidados. O Porto já foi melhor porto
de abrigo.
( Perdoem-me a raivazinha, os laivozinhos de populismo,
porventura, o efeito fácil, mas é que as minhas filhas bem
podiam estar a passear por ali. No fundo, qualquer um de nós.)
(palavras em discurso directo retiradas do "Jornal de Notícias" e as imagens da SIC)
03 fevereiro, 2006
só deus afasta demónios?
© Porto 2006 (da exposição "Anschool II" de Thomas Hirshhorn,
Museu de Serralves)
02 fevereiro, 2006
acordar com a burra
- Vamos lá, filhota, está na hora de te levantares! Senão, ainda
vamos chegar atrasados.
- Vamos chegar atrasados porque tu me acordaste, e não me
deixaste chegar ao país dos sonhos.
- Sabes lá se chegavas ao país dos sonhos. Se calhar até fiz bem,
porque podias acabar por acordar no país dos pesadelos.
- O caminho dos pesadelos é que leva ao país dos sonhos. Como
insistes em acordar-me, acordei perdida no meio do caminho,
nunca mais lá vou chegar ao país dos sonhos.
- É melhor deixares essa tua viagem maravilhosa para o fim-
de-semana. Agora temos mas é que nos pôr a caminho da escola.
- Na escola não me posso pôr a sonhar. Só me querem ensinar
pesadelos.
- Vá lá, despacha-te... Mais um dia em que parece que acordaste
com a burra.
- Deixa lá, os burros são os melhores amigos dos homens!
- Ah, pois são! E teimosos como eles!
vamos chegar atrasados.
- Vamos chegar atrasados porque tu me acordaste, e não me
deixaste chegar ao país dos sonhos.
- Sabes lá se chegavas ao país dos sonhos. Se calhar até fiz bem,
porque podias acabar por acordar no país dos pesadelos.
- O caminho dos pesadelos é que leva ao país dos sonhos. Como
insistes em acordar-me, acordei perdida no meio do caminho,
nunca mais lá vou chegar ao país dos sonhos.
- É melhor deixares essa tua viagem maravilhosa para o fim-
de-semana. Agora temos mas é que nos pôr a caminho da escola.
- Na escola não me posso pôr a sonhar. Só me querem ensinar
pesadelos.
- Vá lá, despacha-te... Mais um dia em que parece que acordaste
com a burra.
- Deixa lá, os burros são os melhores amigos dos homens!
- Ah, pois são! E teimosos como eles!