Portugal e Brasil, por Agostinho da Silva
perdoem, mas a citação vai ser longa.
Mestre Agostinho o merece.
(especialmente para Moloi, meu agitador-mor.)
" Tanto quanto é possível sabê-lo, pela documentação histórica até agora
conhecida e por vestígios actuais, caracterizou-se o povo português, na
época em que mais livremente se pôde desenvolver, pelo sentido colectivis-
ta da sua economia, pela liberdade das suas instituições políticas, pelo cur-
so aberto que dava à sua intuição e ao seu sentimento religioso no que res-
peitava a doutrinas e formas de culto. Com todo o exagero, ou, antes, toda
a imprecisão que o generalizar acarreta consigo, pode dizer-se que o povo
de Portugal tendia a ser contra toda a forma de economia, que, pela con-
corrência e pelo afã do lucro,destrói em nós a humanidade; contra todas as
formas de governo em que se pretende modelar os outros e não apenas
ajudá-los a ser o que são na sua forma mais perfeita e criadora; contra to-
das as fórmulas religiosas em que centralismo, rito e doutrinas,que são mais
palavras do que actos e tendem a sufocar a chama de amor, de busca de
unidade pessoal e universal e de sentido da totalidade do mundo, sem a
qual a religião é apenas meio de vida, administração e política de obscuran-
tismo. Colectivista sempre que o podia, nos comuns da agricultura e da
pastorícia ou nas campanhas do mar; republicano e livre nas instituições
municipais, de que o rei era o coordenador, tão sujeito às leis públicas
como o mais humilde dos cidadãos; sem barreiras ainda no manifestar das
suas aspirações religiosas - tal era o povonos fins da Idade Média, quando
já, no entanto, três outras formas, não direi de ser, mas de ter, o ameaça-
vam dos lados da Europa, nome que dou a toda a terra para norte dos
limites da oliveira e à qual se deveria estender o dito popular que atribui aos
nossos vizinhos espanhóis, nome errado em vez de castelhanos, as origens
dos maus ventos e dos maus casamentos. Essas tais três outras formas, cujo
aparecimento era indispensável para o desenvolvimento material da Huma-
nidade, mas que lhe trariam graves consequências para o seu desenvolvi-
mento espiritual, eram o capitalismo comercial de origens alemãs e italianas,
sem que italiano aqui signifique mediterrâneo; o cesarismo jurídico romano,
que se traduz pelo absolutismo real e a decadência dos municípios; e o
outro cesarismo, o religioso, que se formula no Concílio de Trento e de que
só em nossos tempos se vai libertando o Vaticano.
Lançado na empresa dos Descobrimentos, que, por evidentemente não
ser realizada pelos anjos, estava sujeita a todas as tentações humanas, no-
meadamente à do enriquecimento fácil, à do comando por um ou poucos e
à do baptismo em massa, Portugal perde o carácter que o teria logo leva-
do, então, à cabeceira do mundo, perde o Paraíso que tinha construído e
que a nossa época, apesar das apareências contrárias, torna cada vez mais
de reconquista possível, e lança-o ao domínio dos mitos, e faz sebastianis-
mo, mas com um grande mérito que outros povos não têm: o de manter a
esperança de que o desenvolvimento técnico não nos faça perder a alma,
antes a livre do mais tentador dos demónios, que é a miséria, com todo o
seu cortejo diabólico das humilhações e desesperos. É exactamente por
isso que hoje, a par de todos os esforços que faça pelo seu progresso
económico, cuja meta deve ser a da abundância de tudo para todos,
Portugal tem o dever máximo de reensinar ao mundo, que tanto andou e
anda por outros caminhos, que não há homem verdadeiro se as suas mãos
não são livres e são para o trabalho de produzir, se a sua cabeça não é
livre para que por ela se governe, se não é livre o seu coração para que
nele Deus resplenda. Portugal nunca reinará pelo seu aço, pelos seus
bancos ou pelo seu absolutismo, pois outros mais poderosos vão na sua
dianteira. Mas que seja arauto da liberdade e se mostre como povo que
se desagrilhoa de todas as cadeias e os outros o seguirão com a um
pastor - pastor uno de um rebanho uno.
Pois houve gente no Portugal do século XVI que sonhou o grande sonho
e não se quis render ao que eram as realidades portuguesas a partir de
D. João II, que tantos historiadores da mesma igualha olham ainda como
a um grande rei, quando nele a boa cepa portuguesa se entortou para
muito tempo em maquiavelismos que nem inteligentes foram, como o do
florentino. Foram esses portugueses, os que não se resignaram ao que
tinham em volta e sobretudo em cima, tais como aqueles que hoje se
dirigem aos ilusórios salários de Mercado Comum, que abandonaram
um Portugal que lhes não servia nem se deixava servir por eles e partiram
para o Brasil, para as terras novas de gente nova, e tudo fizeram aí, longe
dos monopólios, dos reis e dostridentinos, a fim de instaurar uma grande
nação que conservasse as liberdades populares, desse azo a colectivismos
económicos e soltasse as imaginações para a construção religiosa. Os
europeus ficaram nos seus gabinetes da Europa, escrevendo utopias que
a nada levaram. Os portugueses, com sentido das realidades e da acção,
tentaram, e em grande parte o conseguiram, levar para além dos mares o
Portugal autêntico que era o seu. (...)"
publicado em 19 de Março de 1971
Mestre Agostinho o merece.
(especialmente para Moloi, meu agitador-mor.)
" Tanto quanto é possível sabê-lo, pela documentação histórica até agora
conhecida e por vestígios actuais, caracterizou-se o povo português, na
época em que mais livremente se pôde desenvolver, pelo sentido colectivis-
ta da sua economia, pela liberdade das suas instituições políticas, pelo cur-
so aberto que dava à sua intuição e ao seu sentimento religioso no que res-
peitava a doutrinas e formas de culto. Com todo o exagero, ou, antes, toda
a imprecisão que o generalizar acarreta consigo, pode dizer-se que o povo
de Portugal tendia a ser contra toda a forma de economia, que, pela con-
corrência e pelo afã do lucro,destrói em nós a humanidade; contra todas as
formas de governo em que se pretende modelar os outros e não apenas
ajudá-los a ser o que são na sua forma mais perfeita e criadora; contra to-
das as fórmulas religiosas em que centralismo, rito e doutrinas,que são mais
palavras do que actos e tendem a sufocar a chama de amor, de busca de
unidade pessoal e universal e de sentido da totalidade do mundo, sem a
qual a religião é apenas meio de vida, administração e política de obscuran-
tismo. Colectivista sempre que o podia, nos comuns da agricultura e da
pastorícia ou nas campanhas do mar; republicano e livre nas instituições
municipais, de que o rei era o coordenador, tão sujeito às leis públicas
como o mais humilde dos cidadãos; sem barreiras ainda no manifestar das
suas aspirações religiosas - tal era o povonos fins da Idade Média, quando
já, no entanto, três outras formas, não direi de ser, mas de ter, o ameaça-
vam dos lados da Europa, nome que dou a toda a terra para norte dos
limites da oliveira e à qual se deveria estender o dito popular que atribui aos
nossos vizinhos espanhóis, nome errado em vez de castelhanos, as origens
dos maus ventos e dos maus casamentos. Essas tais três outras formas, cujo
aparecimento era indispensável para o desenvolvimento material da Huma-
nidade, mas que lhe trariam graves consequências para o seu desenvolvi-
mento espiritual, eram o capitalismo comercial de origens alemãs e italianas,
sem que italiano aqui signifique mediterrâneo; o cesarismo jurídico romano,
que se traduz pelo absolutismo real e a decadência dos municípios; e o
outro cesarismo, o religioso, que se formula no Concílio de Trento e de que
só em nossos tempos se vai libertando o Vaticano.
Lançado na empresa dos Descobrimentos, que, por evidentemente não
ser realizada pelos anjos, estava sujeita a todas as tentações humanas, no-
meadamente à do enriquecimento fácil, à do comando por um ou poucos e
à do baptismo em massa, Portugal perde o carácter que o teria logo leva-
do, então, à cabeceira do mundo, perde o Paraíso que tinha construído e
que a nossa época, apesar das apareências contrárias, torna cada vez mais
de reconquista possível, e lança-o ao domínio dos mitos, e faz sebastianis-
mo, mas com um grande mérito que outros povos não têm: o de manter a
esperança de que o desenvolvimento técnico não nos faça perder a alma,
antes a livre do mais tentador dos demónios, que é a miséria, com todo o
seu cortejo diabólico das humilhações e desesperos. É exactamente por
isso que hoje, a par de todos os esforços que faça pelo seu progresso
económico, cuja meta deve ser a da abundância de tudo para todos,
Portugal tem o dever máximo de reensinar ao mundo, que tanto andou e
anda por outros caminhos, que não há homem verdadeiro se as suas mãos
não são livres e são para o trabalho de produzir, se a sua cabeça não é
livre para que por ela se governe, se não é livre o seu coração para que
nele Deus resplenda. Portugal nunca reinará pelo seu aço, pelos seus
bancos ou pelo seu absolutismo, pois outros mais poderosos vão na sua
dianteira. Mas que seja arauto da liberdade e se mostre como povo que
se desagrilhoa de todas as cadeias e os outros o seguirão com a um
pastor - pastor uno de um rebanho uno.
Pois houve gente no Portugal do século XVI que sonhou o grande sonho
e não se quis render ao que eram as realidades portuguesas a partir de
D. João II, que tantos historiadores da mesma igualha olham ainda como
a um grande rei, quando nele a boa cepa portuguesa se entortou para
muito tempo em maquiavelismos que nem inteligentes foram, como o do
florentino. Foram esses portugueses, os que não se resignaram ao que
tinham em volta e sobretudo em cima, tais como aqueles que hoje se
dirigem aos ilusórios salários de Mercado Comum, que abandonaram
um Portugal que lhes não servia nem se deixava servir por eles e partiram
para o Brasil, para as terras novas de gente nova, e tudo fizeram aí, longe
dos monopólios, dos reis e dostridentinos, a fim de instaurar uma grande
nação que conservasse as liberdades populares, desse azo a colectivismos
económicos e soltasse as imaginações para a construção religiosa. Os
europeus ficaram nos seus gabinetes da Europa, escrevendo utopias que
a nada levaram. Os portugueses, com sentido das realidades e da acção,
tentaram, e em grande parte o conseguiram, levar para além dos mares o
Portugal autêntico que era o seu. (...)"
publicado em 19 de Março de 1971
1 Comentários:
Afinal, Caetano Velosou viu um ovni (estava acompanhado de Dedé e de um amigo) na praia da Amaralina às duas da manhã.
Isto foi declarado ao jornal O Pasquim em 1971, em entrevista à Luiz Carlos Maciel.
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