24 fevereiro, 2006

crónica de uma tarde bizarra (de jorro, como se fosse num diário)

dia de folga. resolvo reviver velhos tempos. ir ao fantas.
ver filmes de seguida. duplas sessões. filmes raros, filmes
loucos, cinematografias exóticas, filmes do passado, autores
completamente desconhecidos, eu sei lá.
vou de metro. levo algum livro? o diário remendado do luiz
pacheco? não, não quero que me tomem por um intelectual arma-
do ao pingarelho. não quero parecer um libertino escondendo-se
em despovoadas sessões de obscuro, vagamente artístico,
soft-porno japonês. não, não levo. compro depois o público. não,
pior o remendo que o soneto. estou farto de notícias. levo o ipod?
não, também não, não quero ouvir música. já tenho vozes a mais
a bailar na cabeça. depois procurarei alguma coisa para ler.
chego cedo ao rivoli. a tempo da sessão das três.
a woman called abe sada, de noboru tanaka. um olhar intimista
da mulher desolada com a perda do seu amor. eros and thanatos.
a bizarra e extraordinária história verídica da "geisha" abe sada,
que em 1936 matou o seu amante e lhe cortou o pénis. um filme
anterior ao "o império dos sentidos" de nagima oshima, que se
baseia na mesma história. para mim um dos melhores filmes de
sempre.
faltam uns vinte minutos. tenho que matar o tempo. pego no
programa do festival e em tudo que é folheto cultural. esta minha
mania da papelada. encontro um último exemplar da revista de
bolso by.pass. em último caso, já terei que ler.
no hall de entrada encontro o neves. há anos que não o via. um
tipo que eu diria que até os óculos tem esbugalhados. e agora usa
rabo-de-cavalo. estás aqui a reportar, pergunto. sim, pá...respon-
de-me com um ar muito atarefado. mas estás mesmo a trabalhar
na organização do fantasporto? sim, claro, como sempre...eh pá,
há tantos anos que não via o neves que na verdade já não sabia o
que ele fazia!
entro no grande auditório. na ala esquerda, reservada à im-
prensa e aos participantes do festival, não está quase ninguém.
este fantas nem por sombras tem a aura dos tempos do velho
teatro carlos alberto.
atrás de mim, sentam-se uns poucos estudantes, entre rapazes
e raparigas. como é que vocês lá na mouraria, chamam aos
gunas?, ouço. é mitras. cá também dizemos mitras. também não
sabias o que era um trengo, pois não? um trengo é um totó. mas
trengo até pode ser dito numa boa. eu às vezes digo ao meu na-
morado, és um trengo! é carinhoso. depois ainda ouvi umas
coisas sobre festas trance. vá lá que se calaram quando escure-
ceu a sala. hora e meia depois, fim da sessão. na verdade, um
muito bom filme. animado, decido-me a comprar bilhete para a
sessão seguinte. angels guts - the darkest memories, de chusei
sone, também japonês. a história de uma estrela porno que vai
fazer sofrer um fotógrafo, obcecado por ela por tê-la visto em
"acção". acaba por convencê-la a posar para ele. polémico e pro-
vocador quanto baste, angel guts inverte os papéis sexuais,
assim rezava o programa.
falta ainda meia-hora. tempo talvez para lanchar. vou primeiro
a sampaio bruno procurar les inrockuptibles. não encontro, mas
trago de lá a mondo bizarre, de distribuição gratuita. resolvo
ainda ir olhar a praça. ir ver como estão as obras na praça e na
avenida. afinal, até parece estar a ficar mais bonito. como se po-
derá nomear os velhos do restelo aqui do porto? os velhos dos
aliados? os velhos aliados? para eles, talvez, os génios da casa
nunca fazem milagres. deixo-me de ideias provocadoras. ainda
me lançam uma fatwa.
entro no café de roma. atende-me uma rapariga simpática com
ar de alemã ou polaca. mas é bem portuguesa. aqueles folhados
são de quê? um é de chocolate, o outro penso que é de limão.
então quero o de limão, se for de limão. e uma meia-de-leite
morna e clarinha. enquanto espero, folheio a by.pass. encontro,
servindo de capa à agenda cultural, uma fotografia espectacular,
que já vira algures noutra publicação, do manuel jorge marmelo
a tomar um café, equipado a rigor com as cores do ramaldense.
o vermelho-vinho, o branco, o verde. não haverá outro assim no
mundo. o meu ramaldense. o querido clube dos meus primeiros
chutos a sério na bola. tenho que tentar arranjar uma camisola
como a dele. passo os olhos ainda, por uma entrevista a duas
jovens estrangeiras a residir no porto.
kristina, alemã, diz que gosta muito de portugal porque o tempo
passa devagar e as pessoas são muito simpáticas e abertas.
por sua vez, silvia, uma eslovaca, diz que gosta imenso da luz, das
cores das casas, dos azulejos. que é muito inspirador o oceano, as
ondas enormes. mas acha impressionante a diferença entre ricos
e pobres, os sem-abrigo a dormir na rua, bairros miseráveis e,
logo ao lado, pessoas a viver na foz, com dinheiro da família,
barco...que só conhecia essa realidade através das telenovelas
brasileiras que passavam no seu país. lá, durante o regime co-
munista, este tipo de diferença não era tão transparente, todos
tinham emprego e não havia pessoas sem-abrigo. hoje em dia, as
diferenças são já maiores porque o dinheiro foi começando a divi-
dir a sociedade.
chega à mesa o que pedi. ou melhor, o que não pedira. trincado o
folhado, descubro que afinal não é de limão mas de chocolate. e a
meia-de-leite vem quase a escaldar. mas não tenho pachorra
para reclamar, por causa do sorriso simpático da empregada.
volto ao rivoli. a sala está um pouco mais compostinha. umas
cerca de vinte almas penadas a mais que na sessão anterior.
apesar de interessante e muito bem feito, deste filme não rezará
a história. um dia vou procurar estudar o porquê dessa
obssessão fetichista dos japoneses por cuecas (quase sempre
brancas) de mulheres (quase sempre muito jovens).
saio para a rua, para o ar frio que sabe a puro. o lusco-fusco
começa a cobrir a cidade. na trindade, a estação está cheia. hora
de ponta. jovens cochicham estratégias para serem os primeiros
a entrar. lembro-me dos metros japoneses apinhados. dos
dramas das portas a fecharem. dos olhares mortiços ou insidiosos.
dos desejos recalcados. lembro-me de que filmes?
um casal de adolescentes namora apaixonadamente numas
escadas estreitas, quase a barrar o caminho a quem passa.
indiferentes a tudo beijam-se como num filme. será sempre
assim que vemos os beijos dos outros?
chega o metro. estranhamente, consigo um lugar sentado. a meu
lado, uma rapariga de pin brilhante no nariz está a ler um livro
do paulo coelho. não chego a descortinar o título. eu, que não
tenho nenhum livro, abro a mondo bizarre. ponho-me a ler uma
entrevista de david berman, o líder atormentado dos silver jews.
esse grupo de que a cristina, amiga de dias felizes, parece tanto
gostar. esse grupo que eu ainda não soube descobrir, não sei
bem porquê. david diz, que olhando para trás no tempo, nunca
pensou que chegassem tão longe. "nunca tive um plano. acho
divertido pensar que tudo tenha começado como um projecto de
arte conceptual, com um nome escolhido ao acaso e que, actual-
mente, faça tanto sentido. tudo se foi actualizando com os anos.
hoje sou um judeu com 38 anos e uma barba grisalha. até o
nome da banda se tornou realidade!".
o metro chega à estação de ramalde. as pessoas saem muito
calmamente, numa estranha falta de pressa. é já noite. dirijo-me
para o meu carro. passam por mim três ciganitas, a mais velha
está a contar qualquer coisa às outras, está a dizer qualquer
coisa como "ó chavalo, não sejas mentiroso!".
entro no carro. mal ligo o motor, ouço no rádio, "eu começaria
por dizer: minervino pietra".
demasiado acordado para o mundo, tudo me parece bizarro.

14 Comentários:

Blogger H em Stª Apolónia disse...

espero poder continuar a assistir daqui ao fantas...

mas há mesmo dias em que o mundo se faz bizarro. ou fantástico?

24 fevereiro, 2006 01:33  
Blogger MOLOI LORASAI disse...

de jorro, sempre de jorro, antes que os conceitos te emperrem.

24 fevereiro, 2006 01:49  
Blogger Cláudia Rocha Gonçalves disse...

bizarro...
tens é de ir à 'parvónia' mais vezes!

ehehehe

24 fevereiro, 2006 11:31  
Blogger c disse...

tudo é bizarro, francisco

gosto muito do teu texto, vou imprimi-lo :)

24 fevereiro, 2006 12:16  
Blogger c disse...

é pá, já não vejo o neves há tanto tempo...

24 fevereiro, 2006 12:30  
Blogger Nuno Vieira disse...

muito giro o teu texto, gosto especialmente da parte da baixa, também gosto de me perder pelas ruas do centro. acho que nunca vi o neves...


;)

24 fevereiro, 2006 14:57  
Anonymous Anónimo disse...

do melhor

24 fevereiro, 2006 15:57  
Blogger Lourenço Viana disse...

O mundo dá-nos a volta à cabeça, ou a cabeça dá a volta ao mundo, como se preferir...´
Gostei do estilo. Cru.
l.

24 fevereiro, 2006 17:27  
Blogger MOLOI LORASAI disse...

antropologia da união-desunião

24 fevereiro, 2006 18:07  
Blogger Carla de Elsinore disse...

minervino pietra...há tanto tempo. bolas, tenho saudades de casa.

24 fevereiro, 2006 20:28  
Blogger Mónica (em Campanhã) disse...

lembraste-me a expressão fabulosa "dar um chuto à ramaldense".

24 fevereiro, 2006 23:41  
Blogger feniana disse...

amei ler-te.
fui ver aurora. o filme mais bonito do mundo. escreveram.
ao fantas.

01 março, 2006 19:20  
Anonymous Anónimo disse...

eu não aprecio esse tipo de filmes mas gostei de percorrer contigo essa tarde.

01 março, 2006 19:42  
Blogger francisco carvalho disse...

obrigado a todos.
estou que nem sei.

02 março, 2006 00:43  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial