e o país a perder a graça...
Ontem, no final do almoço, por uma réstia de som que me
chegava do televisor distante, dei-me conta que o velho
escritor maldito talvez tivesse morrido. À noite, confirmei-o
num blogue amigo. Imaginei de imediato que hoje, todos nós,
iríamos homenageá-lo com mais ou menos sentidos 'posts'.
E logo pensei em transcrever algo do seu diário remendado.
Mas eis que, curiosamente, numa arrumação nocturna de
quilos de revistas e de milhentos jornais por acabar de ler,
encontrei por acaso este velho exemplar da
Kapa, que terei
guardado precisamente pela qualidade da inusitada, longa,
divertida e franca entrevista com o grande Luiz Pacheco, que
há 15 anos já parecia estar em vésperas da morte. Feliz e
malandramente, escapou-lhe todos estes anos.
Agora que o libertino homem desapareceu, que possam apare-
cer os seus livros nos escaparates. Bem visíveis. Como eu,
muitos outros leitores não lhe conhecerão, nem terão visto
alguma vez sequer, grande parte dos seus livros; não são fáceis
de encontrar.
E que alguém tenha o trabalho exaustivo, e a coragem, de coligir
todas as suas impagáveis entrevistas num único livro. Justa ou
injustamente, sem qualquer tipo de censura ou omissão.
Não se podem perder assim, ingloriamente, nos confins da
nossa memória colectiva, esta vidas exemplares. No melhor
e no pior, tão lusitanamente exemplares...
"k: Eu não imagino Lisboa dos anos 50 e a sensação que tenho sempre em relação a Portugal é que a tradição do século XX em relação a escri-tores é que, primeiro são todos de boas famílias, e depois acabam por ter dinheiro. O Luiz Pacheco não tem...
Paulo [filho de Luiz Pacheco], tens de ir lá acima buscar o livro de família para eles não julgarem que eu sou de famílias ruins. A minha família era uma família de pequena nobreza rural. Vamos, não nasci em berço de ouro, mas também não nasci no orfanato. A família já era uma família em decadência, veio de Elvas para Lisboa. Os coronéis acabam-se, este professor, este Mário Pacheco, poeta/professor morre em Viseu. O meu pai era um borguista, é preciso ver as coisas no seu tempo. O meu pai era um gajo da Belle Époque, estava-se marimbando para o dinheiro, tocava piano e tinha um ouvido excepcional. Mas em vez de se empregar num bar ou numa boîte para ganhar dinheiro, não: punha-se à tarde a tocar piano para ele. Fiz o liceu no Camões até ao 7º ano e depois ele disse-me: «agora não te posso dar mais». Mas eu quis continuar e continuei mais um ano como aluno fantasma. Pedi aos professores se podia assistir às aulas e deixaram-me, mas não me esqueci da matéria, fui lendo, li o Fernão Lopes todo, o Garcia de Resende todo, o Gil Vicente todo. Nos intervalos ia para a biblioteca. Quando cheguei à faculdade fui o melhor, é natural, tinha tido um ano inteiro de prática. Depois desnorteei-me com umas saias e não acabei o curso. Fui para empregado de agente fiscal da Inspecção de Espectáculos ganhar 600 escudos por mês. Depois aparece-ram-me um filho, outro filho, depois comecei a sair da minha mulher, arranjei outra, quartos, pedi a demissão da Inspecção de Espectáculos, que foi uma estupidez. Foi uma estupidez? Bah!... Na altura até foi bom. E aí comecei a vida de saltimbanco."(revista "K", Julho 1992, entrevista de Carlos Quevedo e Rui Zink,
fotografias de Maria Timóteo )