31 janeiro, 2008

começando a celebrar o carnaval*

com Manuel Bandeira


"Era terça-feira gorda. A multidão inumerável
burburinhava. Entre clangôres da fanfarra
passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingênuas ao gosto popular,
em cores cruas.

Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
de peitos enormes - Vênus para caixeiros.
Figuravam deusas - deusa disto, deusa daquilo,
já tontas e seminuas.

A turba, ávida de promiscuidade,
acotovelava-se com alarido
e, aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores.

Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,
o ar lúgubre, negros, negros...
Mas dentro de nós era tudo claro e luminoso!
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria
- a profunda, a silenciosa alegria..."


*este ano com grandes limitações técnicas pois não posso ainda, aqui
no blogue, colocar músicas ou imagens...

30 janeiro, 2008

um interruptor que congelasse para mim o iluminado sorriso da minha criança

"Há algo na tua escrita que me lembra que uma vez pensei em
ensinar ao meu filho uma língua pessoal. Isolá-lo propositada-
mente do mundo falante e mentir-lhe desde a nascença, para
que ele acreditasse exclusivamente na língua que eu lhe daria.
Que seria uma língua misericordiosa. A minha intenção era
andar com ele de mão dada e dar a tudo o que ele visse nomes
que lhe evitassem quaisquer sofrimentos. Para que ele não
pudesse de todo perceber que há guerras, que as pessoas matam,
e que este vermelho é sangue. Uma ideia um bocado velha, eu
sei, mas gostava de imaginá-lo a atravessar a vida com um
sorriso confiante e inocente, o primeiro menino iluminado.
Não preciso de te dizer como fiquei feliz quando ele começou a
falar, deves lembrar-te do milagre que é quando uma criança
começa a dar nomes às coisas. E, no entanto, sempre que ele
aprendia uma palavra nova, uma palavra que é também um
bocado "deles", de toda a gente, mesmo a primeira palavra
dele, uma primeira palavra tão bonita como "luz", senti também
uma ligeira amargura, porque pensei, sabe-se lá o que ele perde
neste momento, os infinitos tipos de claridade que ele sentiu, viu,
saboreou e cheirou, antes de os comprimir todos dentro da
pequena caixa "luz", com o "z" na ponta, como um interruptor
para a apagar. Percebes, não é?"

(de "Em Carne Viva" de David Grossman, traduzido do hebraico
por Lúcia Liba Mucznik)

29 janeiro, 2008

29º dia

de Rui Nunes



"hei-de acabar a eternidade com ruído. E um pássaro
circulará pela dispersão de sons. Não haverá cidades
nem alguém que as recorde. Nessa ausência de sítio,
coleccionarei as diversas fugas do meu rosto para
entender como envelheci.
Chamarei, então, a depor, uma folha em branco."



(retirado de "Que Sinos Dobram Por Aqueles Que Morrem
Como Gado?", Relógio D'Água Editores, 1995)

28 janeiro, 2008

deus, suspiros

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26 janeiro, 2008

notícia perturbante

Scarlett Johansson a cantar um original de Tom Waits?!!
É pá, Maio nunca mais chega...

24 janeiro, 2008

interrupção (forçada)

O meu computador parece ter dado o berro.
Inesperada e inexplicavelmente.
O écran não sai do negro.
Espelho desesperante.

Dia aziago, o de hoje. Também me esqueci de trancar as portas
do carro, e alguém se sentiu convidado a entrar e a dispor dos
parcos valores que por lá havia...

Enfim, por tempo indeterminado, este espaço vai ficar em
silêncio. Até tenho receio de dizer «até breve»...

Mas voltem sempre.

quebra-nozes

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© 2007

23 janeiro, 2008

silogismos

de Ana Luísa Amaral


A minha filha perguntou-me
o que era para a vida inteira
e eu disse-lhe que era para sempre.

Naturalmente, menti,
mas também os conceitos de infinito
são diferentes: é que ela perguntou depois
o que era para sempre
e eu não podia falar-lhe em universos
paralelos, em conjunções e disjunções
de espaço e tempo,
nem sequer em morte.

A vida inteira é até morrer,
mas eu sabia ser inevitável a questão
seguinte: o que é morrer?

Por isso respondi que para sempre
era assim largo, abri muito os braços,
distraí-a com o jogo que ficara a meio.

(No fim do jogo todo,
disse-me que amanhã
queria estar comigo para a vida inteira)

22 janeiro, 2008

a criança vencendo o azul
da piscina, nunca eu soube nadar
nem em águas paradas.

21 janeiro, 2008

mar de janeiro

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20 janeiro, 2008

uma amiga pela índia



"Por aqui, o azul assume tons de laranja. O sol estica-se nas
tardes, quase se encostando na noite, como se lhe perten-
cesse um corpo. Talvez o corpo quente de um doce vaga-
bundo a namorar arrozais entre palmeiras esguias prenhas
de vida. Por aqui as tardes arrefecem devagar e nunca chegam
a ficar frias. O calor cola-se na pele, como uma tatuagem
quente. E os vestidos - delas - escondem os corpos numa
ternura de afectos, adivinhando carinhos. O azul, disse-o,
assume tons de laranja. Nestes fins de tarde os meus olhos
colam-se ao horizonte, numa tentativa de desvendar vidas
dentro do sol. Uma mulher faz castelos na areia. Um menino
sorri ao pai. Um namorado encontra-se nos olhos da rapariga.
Uma vaca estende-se no areal. Desvio-me. Com o devido
consentimento, ainda assim, sento-me por perto. Vejo-lhe a
fisionomia, conto-lhe as costelas, cheiro-lhe o odor podre. Um
homem pergunta se quero ir para algum lado. Respondo-lhe
num sorriso. Talvez outro dia, adivinha ele. E vai embora. Eu
fico. A mulher que faz castelos na areia fica ao meu lado. Do
outro lado fica o barulho dos carros. A nudez da vida. (...)

18 janeiro, 2008

isto de ter o nome nu

o nu do rococó// homão nu// machos nu com o pau bonito//
viver nu em traços// loiro original nu/ imagens de homem
nu urinando na rua// gato nu// ver filmes de nu com
mulheres// homem de quarenta anos nu// palavras com nu//
paraíso tudo nu fotos// homem cabeludo nu// nu de índio//
nu na moda// famosos nu na tv// anjo nu

17 janeiro, 2008

azul que te quero azul

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16 janeiro, 2008

como um haiku (teu corpo nu)

Teu corpo dourado
ao sol de inverno - a pele
de seda das castanhas.

15 janeiro, 2008

outono sobrante

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14 janeiro, 2008

solo

sobre um chão de ouriços sonho
a eriçada cor de teus mamilos
flores de meu outono

12 janeiro, 2008

instante grafado

À janela sacodes
o pó da tua solidão.

No cabelo uma fita
azul pálido como o céu.

Quando olho as manhãs
dos outros engano sempre
meu coração.

11 janeiro, 2008

Escuro

de Rui Pires Cabral


Pergunto-me desde quando
deixou de haver futuro
nas janelas.

Janeiro dói nos olhos
como areia
e tu e eu estamos para sempre
sentados às escuras
no Verão.

10 janeiro, 2008

o libertino fez da sua vida um espectáculo


"(...)
Alberto Serra - Mas isto é um texto obsceno assim, por exemplo,
na linha de um Miller, ou não?
Luiz Pacheco - Eu, nessa altura, já conhecia bem o Miller...
Ó pá, mas obsceno?! O senhor pega aí... Conhece o Blitz?
AS - Sim, sim.
LP - Eu recebo aqui o Blitz [lar de idosos em Palmela] por-
que há uma rapariga lá que me manda, entrevistou-me,
é a Cláudia Galhós. No Blitz há uma coisa que é:
"Mensagens... Amorosas. Polémicas"... São coisas...
«Os cornos do teu pai!», «Vai fazer halteres nos cornos
do teu pai!»... É uma linguagem de malta nova que - por-
que um gosta de um grupo e outro gosta de outro - só usa
a coisa mais desbragada que há. Portanto, aqui [apontando
para o livro sobre a mesa] não há assim grande desbraga-
mento de linguagem. Nem situações. Mas isso hoje caiu
tão na banalidade...
AS - Sim, mas na altura era um texto maldito, quer dizer, à luz
da literatura que então se fazia, indiscutivelmente que era um
texto provocador.
LP - Sim. Não foi por acaso que eu guardei o texto tanto
tempo comigo. Porque desde 61 a 70, quando aquilo é publi-
cado... E depois, publico uma edição muito pequenina...
AS - E a PIDE nunca lhe andou em cima disso, por causa...?
LP - Não, foi proibido mas isso já estava tudo arrumado! Eu
tenho o meu sistema, que é o que eu estou agora a usar
aqui, que é fazer chegar o livro à casa do possível leitor
sem a PIDE dar por isso.
AS - Foi o que lhe safou.
LP - Pois, o que safou... E eu não ia às livrarias.
AS - Mas você fala aqui, em broches, em coisas... quer dizer,
há explicitamente referências que nenhum na altura, que eu me
lembre... que na nossa literatura não havia!?
LP - Sim, não havia. Mas isso é uma vantagem que vai, que
vai... É uma vantagem que... vamos, classifica o texto! Ou
data o texto.
AS - E que lhe dá também importância.
LP - E que lhe dá também importância, não é? Dá também
importância...
AS - Nessa época, coisas assim só tínhamos da Anaïs Nin ou
do Henry Miller?
LP - Não, da Anaïs Nin nem havia muito. Do Miller havia,
mas era lá fora, não é?! Era lá fora, não era aqui em Braga...
E qual é a vantagem?... Ou melhor, qual é a especificidade
de eu pôr isso na primeira pessoa? Ou de eu contar isso
como uma coisa... Porque eu podia em vez de Braga...
punha Praga, em vez de Lolita punha não sei quantas!... É
fácil disfarçar, não é?
AS - Pois. E porque é que não disfarçou?
LP - Não, porque isso era para ser dado como... Primeiro,
como uma confissão. Depois, como desafio. E também
como exemplo.
AS - Exemplo de quê?
LP - Ó pá! Era uma ideia que agora já nem vale a pena ter.
O libertino faz da sua vida um espectáculo. E isto [pousando
pesadamente a mão sobre o livro], é um espectáculo!
AS - Em que sentido?
LP - No sentido de ser uma coisa que se vê, que tem qual-
quer significado, tem qualquer lição.
AS - E qual é a lição que se pode tirar daqui?
LP - Ó pá!, isso agora cada um tira a sua! Isso, faz favor... "




Com a generosa autorização do autor, o jornalista e também
poeta Alberto Serra, editei e passei para o papel, isto é, para
este caderno virtual uma pequena parte de uma entrevista
televisiva com Luiz Pacheco (na sua totalidade, cerca de uma
hora, só infimamente vista e nunca publicada) feita em Abril
de 1998 em Palmela, no quarto do lar, atulhado dos seus livros,
onde vivia, aquando a reedição de "O Libertino Passeia por Braga,
a Idolátrica, o Seu Esplendor".

09 janeiro, 2008

montagem

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still-frames de "Onde Jaz O Teu Sorriso", um filme de Pedro Costa
(filme que capta o casal de cineastas Danièle Huillet e Jean
Marie-Straub, na sala de montagem, trabalhando uma terceira
versão do seu filme "Sicilia!")

08 janeiro, 2008

still life

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© 2007

07 janeiro, 2008

destes já não se fazem

e o país a perder a graça...

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Ontem, no final do almoço, por uma réstia de som que me
chegava do televisor distante, dei-me conta que o velho
escritor maldito talvez tivesse morrido. À noite, confirmei-o
num blogue amigo. Imaginei de imediato que hoje, todos nós,
iríamos homenageá-lo com mais ou menos sentidos 'posts'.
E logo pensei em transcrever algo do seu diário remendado.
Mas eis que, curiosamente, numa arrumação nocturna de
quilos de revistas e de milhentos jornais por acabar de ler,
encontrei por acaso este velho exemplar da Kapa, que terei
guardado precisamente pela qualidade da inusitada, longa,
divertida e franca entrevista com o grande Luiz Pacheco, que
há 15 anos já parecia estar em vésperas da morte. Feliz e
malandramente, escapou-lhe todos estes anos.

Agora que o libertino homem desapareceu, que possam apare-
cer os seus livros nos escaparates. Bem visíveis. Como eu,
muitos outros leitores não lhe conhecerão, nem terão visto
alguma vez sequer, grande parte dos seus livros; não são fáceis
de encontrar.
E que alguém tenha o trabalho exaustivo, e a coragem, de coligir
todas as suas impagáveis entrevistas num único livro. Justa ou
injustamente, sem qualquer tipo de censura ou omissão.
Não se podem perder assim, ingloriamente, nos confins da
nossa memória colectiva, esta vidas exemplares. No melhor
e no pior, tão lusitanamente exemplares...



"k: Eu não imagino Lisboa dos anos 50 e a sensação que tenho sempre
em relação a Portugal é que a tradição do século XX em relação a escri-
tores é que, primeiro são todos de boas famílias, e depois acabam por
ter dinheiro. O Luiz Pacheco não tem...

Paulo [filho de Luiz Pacheco], tens de ir lá acima buscar o livro

de família para eles não julgarem que eu sou de famílias ruins.
A minha família era uma família de pequena nobreza rural. Vamos,
não nasci em berço de ouro, mas também não nasci no orfanato.
A família já era uma família em decadência, veio de Elvas para
Lisboa. Os coronéis acabam-se, este professor, este Mário Pacheco,
poeta/professor morre em Viseu. O meu pai era um borguista, é
preciso ver as coisas no seu tempo. O meu pai era um gajo da Belle
Époque, estava-se marimbando para o dinheiro, tocava piano e
tinha um ouvido excepcional. Mas em vez de se empregar num bar
ou numa boîte para ganhar dinheiro, não: punha-se à tarde a tocar
piano para ele. Fiz o liceu no Camões até ao 7º ano e depois ele
disse-me: «agora não te posso dar mais». Mas eu quis continuar e
continuei mais um ano como aluno fantasma. Pedi aos professores
se podia assistir às aulas e deixaram-me, mas não me esqueci da
matéria, fui lendo, li o Fernão Lopes todo, o Garcia de Resende
todo, o Gil Vicente todo. Nos intervalos ia para a biblioteca.
Quando cheguei à faculdade fui o melhor, é natural, tinha tido um
ano inteiro de prática. Depois desnorteei-me com umas saias e não
acabei o curso. Fui para empregado de agente fiscal da Inspecção
de Espectáculos ganhar 600 escudos por mês. Depois aparece-
ram-me um filho, outro filho, depois comecei a sair da minha
mulher, arranjei outra, quartos, pedi a demissão da Inspecção de
Espectáculos, que foi uma estupidez. Foi uma estupidez? Bah!...
Na altura até foi bom. E aí comecei a vida de saltimbanco."

(revista "K", Julho 1992, entrevista de Carlos Quevedo e Rui Zink,
fotografias de Maria Timóteo
)

06 janeiro, 2008

haikai (estes novos velhos dias)



No meu sonho de Ano Novo
a carruagem da abóbora
não aparece.


Mayuzumi Madoka



Como se a felicidade
esperasse o novo ano
pelo calendário!


Inahata Teiko

05 janeiro, 2008

disponível para sentir a chuva

04 janeiro, 2008

"like a complete unknown"

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still-frame de "No Direction Home, Bob Dylan", um filme de
Martin Scorcese

03 janeiro, 2008

entre vinhas e bajancas

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© Dezembro 2007

02 janeiro, 2008

encontro no café

- Bom ano!
- Qual ano?
- Digo: que tenhas um bom ano.
- Nunca se pode saber se os anos vão ser bons.
- Mas eu só estou a dizer que espero que tenhas um bom ano.
- Não adianta nada. Eu nunca tenho bons anos.
- Foda-se, pá, estás um pessimista do caraças!
- Antes pessimista que péssimo artista.
- Ainda por cima, não te calas. Tens que dar sempre o troco.
- Sou assim, não há muito a fazer. Cá vou vivendo com a
cabeça entre as orelhas. Um dia de cada vez. O futuro é
melhor nem pensar. Para mim, é algo sempre demasiado
longe.
- Mas sendo assim, até me parece uma bela maneira de se
viver a vida. Não devias ter razões para tanto queixume.
- Eu não me queixo. Eu só queria que, em vez de me desejarem
um bom 2008, me desejassem, por exemplo, um feliz 2004 ou
um grande 1998, eu sei lá...
- Como assim, meu?
- Ao fazer as contas com o passado, gostava de conseguir dis-
tinguir alguma coisa boa entre as brumas da minha nevoenta
memória...
- Não deves estar bom da cabeça. Daqui a pouco estás a maldi-
zer o ano em que nasceste. Olha, meu caro, tenho que ir embora,
desejo-te sinceramente um feliz novo ano.
- Ok, obrigado. E eu desejo-te um próspero e espectacular 1964.
- Não, não (entre risos)... Eu sou mais novo que tu, obrigado.
Maio de 68, forever!
- Pois. Aquele abraço.
- Abraços, amigo. E desfaz-me essa mal amanhada barba de três
dias que te faz um gajo mais velho. Isso das gajas até gostarem
é mito.
- Isto é apenas preguiça. É mais: ano novo, barba velha...

E ficou a rir-se amarelamente, enquanto o amigo saía para a rua,
perdido no café. Sem fumo.
Sem rumo.

01 janeiro, 2008

"a matéria simples" de Fiama Hasse Pais Brandão

Os brilhos que na noite vêm
são dos olhos dos que sonham,
viagens pelos mares de outras águas.
São os que não gostam de se elevarem
no ar sobre os antigos oceanos
e amam os pequenos riachos
e o fundo invisível dos poços.