31 janeiro, 2009
Curioso dilema esse de ter que me decidir entre os velhinhos
The Stranglers e os irrequietos Kaiser Chiefs, ambos hoje à
noite no Porto, com concertos em salas curiosamente tão
próximas. Para espanto de alguns amigos afirmei, divertido, que
era um rapaz moderno e que estava muito pouco interessado
em ver uns gajos barrigudos a fazer render o peixe. Não tinha
tido, portanto, muitas dúvidas em optar pelos rapazes de Leeds,
apesar de não ter nenhum dos seus três álbuns, nem conhecer
de cor qualquer das suas canções.
Aproveitando a onda, declaro aqui já, com o mais juvenil dos
entusiasmos, eu sei, que está encontrado o meu single do ano,
o poderoso e irresistível "Ulysses" dos imparáveis Franz
Ferdinand. Com esta música convenceram-me de vez...
Posto isto, é até quase surreal a lembrança desses tempos
longínquos em que muitos slows se dançavam ao som de
"La folie" ou mesmo "Golden Brown". Era eu, concerteza
outro, esse imberbe rapazito bem coladinho ao corpo de
raparigas que não me ligavam peva, em longas tardes
dançantes, nessas tediosas matinées de sábado ou domingo
nas, entretanto, extintas discotecas Glass, Griffon's ou
Brasília Club...
Deturpando o nome do novo disco dos britânicos Kaiser,
apetece-me dizer "off with these unfortunate memories"...
Mais logo, lá estarei eu a bater o pé no chão do velho
Coliseu, e sempre de olho atento nas miúdas mais giras.
Risos. Até eu me rio do gajo que agora sou.
30 janeiro, 2009
29 janeiro, 2009
a força das coisas
de Rui Belo
Passeio sob a sombra de mulheres frondosas
de uma infinitésima memória
Restam-me os limões doces da síria
já que me falta deus ó alpedrinha
ou súbito desejo de ficar na noite
dormindo o sono íntimo da terra
Foi-se o milagre das fontes pelo estio
e não sei que fazer das favas novas
pois abril é um mês que não conheço
Não mereço o barco encalhado de abidjan
após o nascer público do sol
sobre o ramo do cardo emblema da traição
Calmo com um pôr-do-sol vermelho
encerro a cerimónia quotidiana
Quantos fatos vesti quantos despi
nas ruas devassadas por domingos
perante a áspera censura do mar
ou a grande catástrofe do meio-dia
assinalando a morte da manhã
Não terei mesmo um céu sem privilégios
tão previsível como uma recordação
a arte embaladora das palavras
Eis que está próximo o funesto inverno
é o tempo de tudo abandonar
a começar no lençol branco destes dias
Os mortos nem dos vivos se alimentam
é essa a única verdade útil
tão deslumbrante como um grande vento natural
A vida é cada dia mais difícil de lidar
e um velho poeta refugia-se nas tábuas
A mim mulheres frondosas nulo mar
Passeio sob a sombra de mulheres frondosas
de uma infinitésima memória
Restam-me os limões doces da síria
já que me falta deus ó alpedrinha
ou súbito desejo de ficar na noite
dormindo o sono íntimo da terra
Foi-se o milagre das fontes pelo estio
e não sei que fazer das favas novas
pois abril é um mês que não conheço
Não mereço o barco encalhado de abidjan
após o nascer público do sol
sobre o ramo do cardo emblema da traição
Calmo com um pôr-do-sol vermelho
encerro a cerimónia quotidiana
Quantos fatos vesti quantos despi
nas ruas devassadas por domingos
perante a áspera censura do mar
ou a grande catástrofe do meio-dia
assinalando a morte da manhã
Não terei mesmo um céu sem privilégios
tão previsível como uma recordação
a arte embaladora das palavras
Eis que está próximo o funesto inverno
é o tempo de tudo abandonar
a começar no lençol branco destes dias
Os mortos nem dos vivos se alimentam
é essa a única verdade útil
tão deslumbrante como um grande vento natural
A vida é cada dia mais difícil de lidar
e um velho poeta refugia-se nas tábuas
A mim mulheres frondosas nulo mar
28 janeiro, 2009
o mar deu-me esta vontade de duras
"On voudrait que tout fût de cet infini de la mer et de l'enfant
qui pleure. Les mouettes sont tournées vers le large, plumage
lissé par le vent fort. Restent ainsi posées sur le sable, si elles
vollaient contre, le vent casserait leurs ailes. Fondues à la
tempête, elles guettent la désorientation de la pluie. Toujours
cet enfant seul qui ne court ni ne chante, qui pleure. On lui dit: tu
ne dors pas? Il dit non et que la mer est haute en ce moment et
ne dors pas? Il dit non et que la mer est haute en ce moment et
que le vent est plus fort et qu'il l'entend à travers les toiles. Puis
il se tait. Serait-il malheureux ici? Il ne répond pas, il fait un signe
d'on ne sait quoi, comme celui d'une légère douleur, d'une igno-
rance dont il s'excuserait, il sourit aussi peut-être. Et tout à coup
on voit. On ne le questionne plus. On recule. On le laisse. On voit.
On voit que la splendeur de la mer est là, là aussi, là dans les
yeux, dans les yeux de l'enfant."
("L'ÉTÉ 80", Marguerite Duras)
27 janeiro, 2009
26 janeiro, 2009
25 janeiro, 2009
23 janeiro, 2009
yogis
um outro texto de David Lynch, retirado do seu livro
"Em Busca do Grande Peixe"
As primeiras vezes que vi, em livros, fotografias de yogis sentados
de pernas cruzadas nos bosques, nas florestas da Índia, algo me
fazia olhar duas vezes. Reparava nas suas faces. E não era a face
de um homem a desperdiçar tempo. Era a face de um homem na
posse de algo que eu não só queria, mas que desconhecia. Sen-
tia-me atraído para isso. Havia uma tal presença de poder e
dignidade - e uma ausência de medo. Muitos dos seus semblan-
tes continham divertimento ou amor ou poder ou força.
Isso fez-me pensar que a Iluminação devia ser algo real, embora
eu não soubesse o que era. Percebi que a única forma de a tentar
encontrar era começar a mergulhar no interior e ver o que se
desvendava. Porque eu sabia que isso não ia acontecer com a
vida na superfície em Los Angeles.
22 janeiro, 2009
jogo sem bola
© 2004/09
era eu quem podia ter jogado ali a bola.
mas já nem sequer tenho memória de mim.
contentar-me com a pobre ficção. ter-te-ei beijado
junto à baliza. beijos de orvalhada angústia. (ah, esta escrita
de que nunca sacudiste as espúrias inclinações...)
o mar testemunhal.
entre os ombros a língua em ondas.
gestos desajeitados.
sombras de um sargaço ancestral.
não me deste a pele
dos seios. abracei-os
desesperado.
e tudo era tão urgente esperança.
tão futura saudade.
era eu ali parado,
a fumar, encostado ao poste abandonado.
a gritar para a outra baliza o amor que não poderia ter.
reticentes palavras que não marcaram golo.
seria eu ali, alvaramente (deixem-me inventar), na praia
deserta.
mas eu nunca fumei.
21 janeiro, 2009
se alguém respirasse e cantasse uma palavra,
e súbito fosse respirado por ela, fosse
cantado assim
de puro júbilo ou, quem sabe? de medo puro,
poria no termo o selo de si mesmo?
quem é que sabe onde fica o mundo?
e de quê e de quem e de como é composto e dito,
de como uma palavra, uma só, regula
ininterruptamente tudo, e alguém a põe em uso,
oh glória idiomática,
e é posto e disposto até que abuso de que espécie de infuso espírito
das profundezas dessa palavra
cantado assim
de puro júbilo ou, quem sabe? de medo puro,
poria no termo o selo de si mesmo?
quem é que sabe onde fica o mundo?
e de quê e de quem e de como é composto e dito,
de como uma palavra, uma só, regula
ininterruptamente tudo, e alguém a põe em uso,
oh glória idiomática,
e é posto e disposto até que abuso de que espécie de infuso espírito
das profundezas dessa palavra
de "A Faca Não Corta O Fogo", Herberto Helder
20 janeiro, 2009
Pastoral
de William Carlos Williams
Quando era mais jovem
tinha a certeza
que devia fazer algo da minha vida.
Agora, mais velho,
caminho por vielas
admirando as casas
dos muito pobres:
telhados desengonçados
pátios cheios de
velho arame de capoeira, cinzas,
móveis desconjuntados;
as cercas e os anexos
construídos com aduelas
e tábuas de caixotes, todos,
com alguma sorte,
sujos de um verde-azulado
cuja pátina
me agrada mais
que qualquer cor.
Ninguém
acreditará que isto
seja tão importante para a nação.
Quando era mais jovem
tinha a certeza
que devia fazer algo da minha vida.
Agora, mais velho,
caminho por vielas
admirando as casas
dos muito pobres:
telhados desengonçados
pátios cheios de
velho arame de capoeira, cinzas,
móveis desconjuntados;
as cercas e os anexos
construídos com aduelas
e tábuas de caixotes, todos,
com alguma sorte,
sujos de um verde-azulado
cuja pátina
me agrada mais
que qualquer cor.
Ninguém
acreditará que isto
seja tão importante para a nação.
19 janeiro, 2009
18 janeiro, 2009
17 janeiro, 2009
Chegada
de William Carlos Williams
(tradução de José Agostinho Baptista)
E, todavia, chegas
dás por ti a desatar-lhe
o vestido
em alheios aposentos -
sentes que o outono
deixa cair as suas folhas de seda e linho
junto aos seus tornozelos.
Falso é o brilho do corpo que emerge
e se contorce
como o vento do inverno...!
E, todavia, chegas
dás por ti a desatar-lhe
o vestido
em alheios aposentos -
sentes que o outono
deixa cair as suas folhas de seda e linho
junto aos seus tornozelos.
Falso é o brilho do corpo que emerge
e se contorce
como o vento do inverno...!
16 janeiro, 2009
15 janeiro, 2009
banquete de uma noite de primavera no jardim dos pêssegos e das ameixas
de Li Bái (701-762), considerado um dos maiores poetas
chineses de sempre (texto retirado da colectânea "O Rosto do
Vento Leste", Assírio & Alvim, 1993).
O céu e a terra são o albergue de passagem de todas as coisas.
O tempo é o hóspede em trânsito de todas as gerações. Que
alegrias podemos ter, se flutuamos na vida como num sonho?
Boas razões tinham os antigos para, empunhando tochas, até a
noite aproveitarem para viajar. Quanto mais quando a prima-
vera solarenga nos atrai com as suas paisagens esfumadas e a
natureza nos seduz com o bordado da sua escrita!
Reunimo-nos no perfumado Jardim dos Pêssegos e das Ameixas
para discorrer sobre as alegrias da divina fraternidade. Todos
os meus irmãos são talentosos e belos, todos são Huì-lián (1).
Cantamos e recitamos as nossas poesias e sou eu o único que
devo sentir vergonha perante Kàng Lè (2).
O gozo sereno da paisagem deste jardim nunca termina, dis-
correndo sobre temas elevados que se vão tornando cada vez
mais transparentes.
Desenrolamos esteiras requintadas e, sentados entre as flores,
passamos taças de vinho e embriagamo-nos sob a lua.
Se não fizermos boas obras, como poderemos revelar os nossos
sublimes pensamentos?
Se alguém houver que não seja capaz de escrever um poema,
terá de ser castigado segundo as regras do Jardim Jin-gu (3),
pagando uma multa de três copos de vinho.
(1) Escritor do período das Dinastias do Sul. Aos dez anos de idade
já escrevia poesia. Foi discípulo do poeta Xiè Líng-yún e o par era
conhecido por "o velho e o jovem Xiè". Neste passo, o autor elogia
os irmãos, dizendo que têm tanto talento como Xiè Huì-lián.
(2) Xiè Líng-yún era também conhecido por Xiè Kàng-lè.
(3) Nome de um jardim onde o nativo da província de Shanxi, Shí
Cháng-jiàn, organizava banquetes para os convidados comporem
versos.
chineses de sempre (texto retirado da colectânea "O Rosto do
Vento Leste", Assírio & Alvim, 1993).
O céu e a terra são o albergue de passagem de todas as coisas.
O tempo é o hóspede em trânsito de todas as gerações. Que
alegrias podemos ter, se flutuamos na vida como num sonho?
Boas razões tinham os antigos para, empunhando tochas, até a
noite aproveitarem para viajar. Quanto mais quando a prima-
vera solarenga nos atrai com as suas paisagens esfumadas e a
natureza nos seduz com o bordado da sua escrita!
Reunimo-nos no perfumado Jardim dos Pêssegos e das Ameixas
para discorrer sobre as alegrias da divina fraternidade. Todos
os meus irmãos são talentosos e belos, todos são Huì-lián (1).
Cantamos e recitamos as nossas poesias e sou eu o único que
devo sentir vergonha perante Kàng Lè (2).
O gozo sereno da paisagem deste jardim nunca termina, dis-
correndo sobre temas elevados que se vão tornando cada vez
mais transparentes.
Desenrolamos esteiras requintadas e, sentados entre as flores,
passamos taças de vinho e embriagamo-nos sob a lua.
Se não fizermos boas obras, como poderemos revelar os nossos
sublimes pensamentos?
Se alguém houver que não seja capaz de escrever um poema,
terá de ser castigado segundo as regras do Jardim Jin-gu (3),
pagando uma multa de três copos de vinho.
(1) Escritor do período das Dinastias do Sul. Aos dez anos de idade
já escrevia poesia. Foi discípulo do poeta Xiè Líng-yún e o par era
conhecido por "o velho e o jovem Xiè". Neste passo, o autor elogia
os irmãos, dizendo que têm tanto talento como Xiè Huì-lián.
(2) Xiè Líng-yún era também conhecido por Xiè Kàng-lè.
(3) Nome de um jardim onde o nativo da província de Shanxi, Shí
Cháng-jiàn, organizava banquetes para os convidados comporem
versos.
14 janeiro, 2009
13 janeiro, 2009
ainda
do livro do frio
de Antonio Gamoneda
Há uma erva cujo nome não se sabe; assim foi a
minha vida.
Regresso a casa atravessando o Inverno: esquecimento
e luz sobre as roupas húmidas. Os espelhos estão
vazios e nos pratos cega a solidão.
Ah a pureza das facas abandonadas.
12 janeiro, 2009
10 janeiro, 2009
o seu vício das letras
Imagine um deus pecador, pecador
mesmo.
Qual seria o universo resultante?
Quem sabe o autor destas palavras, Paulo Luiz Barata, meu anda-
rilho amigo e inclassificável poeta, não apresenta hoje, no lança-
mento do seu livro Senya Semiotyka, o último da trilogia
"Mingus", um esboço de resposta para tão aliciante questão.
Quem sabe nos revelará a chave para semioticamente acedermos
a esse mundo muito pessoal de «spirituals, ímans e porrilóquios».
Hoje, por volta das quatro da tarde, na livraria Vício das Letras,
em Santa Maria da Feira.
mesmo.
Qual seria o universo resultante?
Quem sabe o autor destas palavras, Paulo Luiz Barata, meu anda-
rilho amigo e inclassificável poeta, não apresenta hoje, no lança-
mento do seu livro Senya Semiotyka, o último da trilogia
"Mingus", um esboço de resposta para tão aliciante questão.
Quem sabe nos revelará a chave para semioticamente acedermos
a esse mundo muito pessoal de «spirituals, ímans e porrilóquios».
Hoje, por volta das quatro da tarde, na livraria Vício das Letras,
em Santa Maria da Feira.
o livro do paulo
- Filhinha, tens que deitar-te. Já é muito tarde, estás com os
olhos um bocadinho negros, cheios de sono. Hoje tiveste que sair
da cama muito cedo.
- Primeiro tens que me contar uma história.
- Acho que sou eu que vou adormecer primeiro a ler-te a história.
Estou a morrer de sono. Também fazia bem em dormir já.
- Então porque não vais dormir?
- Combinei ir tomar um café com o Paulo. Sabes, ele amanhã lança
um livro escrito por ele.
- Eu não gosto dos livros dos crescidos.
- Porquê, filha?
- Porque são só para ler.
olhos um bocadinho negros, cheios de sono. Hoje tiveste que sair
da cama muito cedo.
- Primeiro tens que me contar uma história.
- Acho que sou eu que vou adormecer primeiro a ler-te a história.
Estou a morrer de sono. Também fazia bem em dormir já.
- Então porque não vais dormir?
- Combinei ir tomar um café com o Paulo. Sabes, ele amanhã lança
um livro escrito por ele.
- Eu não gosto dos livros dos crescidos.
- Porquê, filha?
- Porque são só para ler.
08 janeiro, 2009
07 janeiro, 2009
06 janeiro, 2009
do livro do frio
um poema sem título de Antonio Gamoneda
Veio tua língua; está na minha boca
como uma fruta na melancolia.
Tem piedade em minha boca: liba, lambe,
meu amor, a sombra.
Veio tua língua; está na minha boca
como uma fruta na melancolia.
Tem piedade em minha boca: liba, lambe,
meu amor, a sombra.
05 janeiro, 2009
04 janeiro, 2009
o poema ensina a cair
de Luiza Neto Jorge
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lente volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.