Tudo podia ser
o vazio nesta manhã.
O mentiroso desta bela manhã.
A manhã está já presente
na dor cava
de quem ainda dorme.
Esgotado o encontra.
Acorda.
Na luz da fala vai acordando,
permitindo o nascente sol enorme
que trará os estigmas, os sons, imagens.
Sobre a secretária quotidiana atulhada,
inúmeros papéis e números inúteis.
O ventanoso rosnar dos ventiladores,
a proximidade do caos de todos os dias
do trânsito rodoviário,
a faina miserável das gaivotas
nas patéticas cascatas de esgotos
que a cidade tonta vomita no rio,
uma ou outra tosse, ecos
do ardor implacável de um inverno atrasado,
o som rilhado dos computadores
na impressão automática das palavras,
anjos do uso de todos os deuses.
O rio,
sensualidade, solidão.
O rio refulgindo a cinza do tempo,
a cinérea cor das pedras.
Rio de ouro de insensatos lumes,
espelho velho de miragens.
Desfaço-o. Eu não vejo nada.
Atiro às águas o resto de uma maçã.
O impúdico riso das gaivotas devorado,
esquecido nos limites do círculozinho de ondas
prestidigitado.
Pouco se avista também da outra margem.
Uma casa solarenga, talvez freixos,
todas as árvores de aparência lacrimejante,
um breve estuário eternizando o tempo.
Dali veio um homem
já falecido há muitos anos
morrer perto de nós.
Mas não se sabe bem. Não se sabe completamente.
Pública voz que diz
o que quer de quem morre.
Ignaras aves.
Estas manhãs.
Tudo podia ser o que sei
desta manhã.
Sono. Um assassino sono
porfiando na cegueira do olhar.
O apagamento.
Sou sincero,
confesso as garras,
retomo o poema no
descrédito das horas.
Um cavalo metáfora de fantasmas,
lúcidas esporas,
almejando a sombra da lua
onde insinuar os cios, os ciúmes,
a língua truculenta de um comboio.
Ilusão virginal a desta manhã,
no trigo não haver joio,
horas inconfessáveis a dobar
e a dobrar as palavras,
arisco sobre o tempo
arrisco sulcar a memória,
dotar, domar
os ígneos enigmas da vontade.
Tudo podia ser o vazio,
nestas manhãs de tantas sirenes
a magoar.