31 agosto, 2009

não pensam em quem salpicam com a espuma

Vinte e oito jovens banham-se na praia,
Vinte e oito jovens tão cordiais;
Vinte e oito anos de vida feminina e tão solitários.

Ela possui a bela casa onde se ergue a margem,
Esconde-se formosa e elegante atrás dos estores da janela.

De qual dos rapazes gosta mais?
Ah, até o mais humilde lhe parece belo.

Aonde vais, senhora? Estou a ver-te,
Lá no meio da água, ainda que estejas imóvel no teu quarto.

Dançando e rindo chegou à praia a vigésima nona banhista,
E eles não a viram, mas ela viu-os e amou-os.

Húmidas cintilavam as barbas dos jovens, a água escorria dos cabelos longos,
Pequenos jorros percorriam esses corpos.

Uma mão invisível também percorreu os seus corpos,
Descendo trémula da fronte e das costelas.

Os jovens flutuam de costas, os ventres brancos destacam-se ao sol,
não perguntam quem os abraça fortemente,
Não sabem quem respira inclinado, pendente e curvo como um arco,
Não pensam em quem salpicam com a espuma.




do "Canto de Mim Mesmo" de Walt Whitman
(com tradução de José Agostinho Baptista)

29 agosto, 2009

mais uma leitura estival

" E assim conhecemos Luis Antonio Vera, aliás Verita, pelo afectuoso
e simpático que era, engenheiro agrónomo de profissão, enólogo de
especialização, em França e onde haja bom vinho, homem de eterno
sorriso que nunca na vida tinha tido um problema, e que no seu eno-
lógico e motociclista percurso pelos vinhedos de Europa e meia ia
deixando um rasto de alegria e positivismo absoluta e contagiosamente
maravilhosos. Porque para Verita todo o bem era possível e todo o mal
pura e simplesmente impossível. Verita era um exemplar único de peru-
ano optimista de fio a pavio e de cabo a rabo, de sol a sol e de ano após
ano e de década após década, de manhã, à tarde e à noite. Eu, um dia,
por exemplo, perguntei-lhe por César Vallejo, o mais metafisicamente
triste e pessimista de todos o s peruanos, o que é dizer muito, e que
inclusivamente considerava muito séria e gravemente a possibilidade
de ter nascido num dia em que Deus estava doente...
— Não me venhas com histórias, maninho — interrompeu-me Verita,
acrescentando: — Sem vontade de querer discutir com todo um homem
de letras de câmbio, eh eh, como tu, permite-me que te diga que, por
maior e genial que fosse Vallejo como poeta, só um tomates tristes se
lembraria de pensar uma coisa assim, e ainda por cima pespegá-la num
poema.
— Está bem, mas ele lembrou-se.
— Balelas, maninho. Põe-me tu o Cholo Vallejo à frente e dou-lhe tal
injecção de arrebita fruta que o converto em Walt Whitman. A esse
homem de certeza que lhe faltava uma mulherzinha boa e um desses
vinhos cujo segredo só este peitinho possui."




(excerto do conto "Verita e a Cidade-luz" reunidos no livro "Guia Triste
de Paris"
de Alfredo Bryce Echenique)

26 agosto, 2009


O verão fresco lá
fora — ventos melancólicos
até na televisão.

24 agosto, 2009

macaca

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23 agosto, 2009

macaco

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22 agosto, 2009

um euro custou esta prodigiosa dor

"James põe-se em pé, sorri, pede desculpa aos lavradores com uma li-
geira vénia. Pega nos jarros, dois em cada mão, e passa a porta das tra-
seiras da cozinha para um quarto frio, sem janelas, com uma caldeira,
tubos e barris, onde o reverendo, quatro vezes por ano, procede ao fa-
brico da sua cerveja de mesa e onde a Sra Cole cria os seus vinhos cam-
pestres, garrafas arrumadas contra duas das paredes. A despeito do frio,
Mary está ali sentada, muito quieta numa cadeira com assento de pa-
lha, aparentemente sem fazer nada. Uma candeia arde aos seus pés,
que estão juntos, asseados como gatos. James tira a cerveja. Quando
acaba diz:
— Vem daí. Aqui está frio, mesmo para ti.
Ela observa-o, os seus olhos, dois seixos negros enterrados.
— Não passam de pobres lavradores — diz ele. — Som e fúria. Não é
nada. Não passa disto — levanta um dos jarros. — Anda sentar-te com
o Sam e comigo à beira do fogo.
James leva a cerveja para a cozinha e pousa-a na mesa. Muito deseja
sabê-la feliz, pelo menos contente.
— Aah! O vosso 'lixir da vida, Doutor. Salvou-nos da morte seca.
— Vivam os senhores. Saúde e felicidade.
— Não entornais coa gente?
— Se agradar à companhia.
— Bem falado, homem!
O jarro é passado em volta e cai cerveja na mesa a cada caneca.
— Um brinde, rapazes!
— Ao Rei!
— Ao lavrador George e ao velho Snuffy!
— À melhor cona da Cristandade!
— Nã rapazes — é Weedn Tull a falar. — Ao nosso doutor Dyer. Não foi
feliz co nome, pois não — saudações à piada — mas como não tem que
prestar contas a ninguém nem à cara-metade, nem pega na faca mais
que para cortar o pão, salva mais vidas do que o outro em todo o reino!
O brinde é respondido. James diz:
— Generoso da vossa parte, meus senhores. Muito.
Uma voz pergunta:
— Onde está o Will Caggershot? Diz-nos um verso dos teus, Will. Diz
o "Sally Salisbury".
A companhia põe-se a olhar para ele como rapazinhos da escola.
Caggershot aclara a garganta.

Aqui jaz deitada por fim inactiva
Quem com afinco ao vício se entregou
A pobre Sally da morte escarnecida;
Não admira se o alento lhe faltou.

Atrás do prazer muito ela caprichou
E bem lhe parecia regalada a vida
Que inda lhe ia a meio quando se finou...


Detém-se, a olhar por cima das cabeças dos outros para o quarto da
caldeira. Os outros torceram-se nos assentos para verem. James levan-
ta-se do banco da lareira, os braços abertos como se desejasse fisica-
mente reunir de novo a companhia.
— É apenas a Mary, meus senhores. Não é preciso interromperem as
vossas canções.
— A gente sabe quem é, doutor.
Caggershot volta para o seu assento. Os lavradores mergulham os olhos
no centro da mesa. James encolhe os ombros, vai junto de Mary e con-
du-la ao banco ao lado do de Sam. Lentamente, a conversa é retomada,
como uma velha bomba de água temporariamente bloqueada. Bebem;
enchem-se de novo os jarros. Mary é esquecida. Caggershot canta as
suas canções, cada qual mais lasciva que a anterior. Depois Een Tull,
irmão de Ween, claramente o lamentável bobo da festa, aponta o seu
dedo trémulo a Mary dizendo:
— Atão a mulher, Dòtor, que mostre a cremalheira e tudo.
O pedido é secundado pelos outros e tão prontamente que é óbvio que
Een se limitou a dizer o que os outros pensavam. James tinha chegado
a temer esta viragem, mas tivera esperança de que se retivessem por
respeito para com ele como "o Doutor" e como amigo do reverendo,
como evidente protector de Mary. E ele é que tinha a culpa, ele é que
a expusera. Põe-se de pé, de peito cheio.
— NADA DE BARRACA DOS MONSTROS, MEUS SENHORES!
Não há ninguém na sala, nem mesmo Mary, que tenha conhecido
James Dyer como o jovem imaculado partido para a Rússia no Outono
de 1767. Ninguém que o tenha visto todo elegante, com uma casaca
de raios e coriscos, a apertar a mão ao embaixador imperial como se
fosse o embaixador a dever sentir-se honrado pelo contacto. Ninguém,
sequer, que imaginasse tal coisa, salvo talvez Sam, que arrumava
mentalmente lindos títeres dentro de uma espécie de história. De
momento, os lavradores estão de todo inabaláveis.
O sossego é quebrado por um som como a chuva a começar. Mary
vai até ao topo da mesa, as mãos singelamente juntas na cintura,
como quem vai cantar para eles. Espera, naquela sua segura teatra-
lidade, a seguir abre os lábios num esgar, de forma que os seus dentes
da frente, muito desbastados, uma fila de pontos, ficam a ver-se até
às gengivas. Da mesa sobe um murmúrio de espanto. Aquilo é muito
melhor do que uma ovelha com duas cabeças ou um peixe matemático
numa caixa mal cheirosa, numa feira rural. As expressões deles são tão
ridículas, alguns deles mimando involuntariamente o esgar de Mary,
que a ira de James se transforma em riso, um riso sonoro, libertador,
que podia ter despertado algumas palavras azedas não tivesse o reve-
rendo entrado na cozinha, o rosto, a despeito da sangria, perigosa-
mente inchado após cinco horas de comida, bebida e cartas. Fita
intrigado James, depois dirige-se aos lavradores.
— Meus senhores, sinto que não devo reter-vos por mais tempo. Eu
próprio sou lavrador o bastante para saber que deveis estar ansiosos
por voltardes a vossas casas.
O aparecimento de um superior, mesmo tão destituído de ouropéis
como um pároco, traz uma sobriedade desagradável. Batem-se os
cachimbos, escoa-se a última cerveja das canecas. As expressões
dos homens parecem já antecipar as sensações frias que a madrugada
seguinte trará: a luta renovada com animais recalcitrantes, calcorrear
campos quietos às escuras como o primeiro ou último homem na terra."





(excerto de "A Dor Industriosa" de Andrew Miller)

18 agosto, 2009

espécie de paraíso

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ler essa dor maravilhosa

" A palavra 'lobo' salta para dentro do seu espírito como se fosse
a própria fera. Histórias de lobos da infância. Sonhos infantis com
animais de pêlos que picam e olhos cor do gelo, à banda, atentos,
pressentindo o sonhador nas florestas do sono. Aqui não há Mamã
para vencer o horror com uma canção de embalar. Este, pensa o
reverendo olhando em volta para os seus companheiros, podia ser
um bom momento para recuperar os confortos da oração, e mal
formulou um 'Pai Nosso' silencioso, com palavras incómodas,
grandes como ovos dentro da sua boca, quando todas as orações,
todos os pensamentos são instantaneamente suspensos.
O Sr. Featherstone pergunta: — O que foi...?
O segundo tiro é mais nítido que o primeiro. O coche pára, ninguém
fala. Um grito? Suspendem a respiração. Ouvem apenas o bater dos
seus próprios corações, a força do vento.
O reverendo diz:
— Caçadores?
— No meio disto? — escarnece a Sra. Featherstone.
— Terá sido um sinal? — diz o reverendo. — Um viajante aflito. Não
devíamos investigar, monsieur?
O Sr. Featherstone pergunta:
— Há bandidos por estas partes, monsieur?
About encolhe os ombros. Encolhe outra vez.
— Lamento. Há coisas que nem o próprio About sabe.
A Sra. Featherstone diz:
— Porque não vai um de vós ver o que é? Porque ficam todos
sentados?
— Mas com certeza, querida — diz o Sr. Featherstone — o meu
principal dever é proteger-te.
About diz:
— Bravo, monsieur. Por mim, já fui lá fora uma vez e não gostei.
Ainda tenho as meias muito molhadas.
Olham para o reverendo, que sustenta os olhares por momentos,
depois abotoa a gola do seu casaco, faz força para abrir a porta do
seu lado e salta, tão ligeiro quanto pode, para o mundo uivante."




(excerto de "A Dor Industriosa" de Andrew Miller)

13 agosto, 2009

a gosto neste calor

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12 agosto, 2009

mar, mar, o rumor
do mar — lidar com
esse silêncio.

07 agosto, 2009

pouco verão

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06 agosto, 2009

a guerra ganha

"Alguns dos livros estavam escritos em urdu, a língua dos muçul-
manos — que é só pontos e rabiscos, como se um corvo tivesse
molhado as patas em tinta preta e as tivesse pressionado contra a
folha. Estava eu a folhear um destes livros quando o vendedor me
perguntou: — Você sabe ler urdu?
Era um muçulmano já de idade, com uma cara negra como breu
perlada de suor, como as folhas das begónias depois de chover, e
uma barba branca comprida.
Eu perguntei-lhe por minha vez: — E
você sabe?
Ele abriu um livro, clareou a voz e leu: — " Tu andaste anos à pro-
cura da chave." Compreendeu? — Cravou os olhos em mim, rugas
profundas na testa negra.
— Sim, meu tio muçulmano.
— Cale-se, seu mentiroso. Cale-se e ouça.
Clareou uma vez mais a voz.
— " Tu andaste anos à procura da chave./ Mas a porta esteve
sempre aberta!"
Fechou o livro. — A isto chama-se poesia. Agora desapareça-me
da vista.
— Por favor, tio muçulmano — supliquei-lhe. — Eu sou apenas o
filho dum condutor de riquexó vindo da Escuridão. Diga-me tudo
o que sabe a respeito da poesia. Quem é que escreveu esse poema?
Ele abanou a cabeça, mas eu continuei a bajulá-lo, a dizer-lhe que
bela barba ele tinha, que nunca tinha visto uma pele tão alva como
a dele (ah!), como era óbvio que ele não era um criador de porcos
convertido, mas um muçulmano de gema que chegara ali a flutuar
num tapete mágico vindo directamente de Meca, e ele resmungou
de satisfação. Leu-me mais um poema e outro ainda — e explicou-
-me a verdadeira história da poesia, que encerra uma espécie de
segredo, uma magia que apenas os homens sábios conhecem.
Senhor primeiro-ministro, não lhe estarei a dar nenhuma novida-
de se lhe disser que a história do mundo é a história duma guerra
de dez mil anos entre os cérebros dos ricos e dos pobres. Cada
facção está eternamente a tentar enganar a facção oposta; e assim
tem sido desde o início dos tempos. Os pobres vencem meia dúzia
de batalhas (as mijadelas nos vasos das plantas, os pontapés nos
cães de estimação, etc.), mas está claro que há dez mil anos que os
ricos têm a guerra ganha. É por isto que um dia, alguns homens
sábios, movidos por compaixão aos pobres, lhes deixaram sinais e
símbolos em poemas, que parecem versar sobre rosas, raparigas
bonitas e coisas do género, mas quando compreendidos correcta-
mente , revelam segredos que permitem ao homem mais pobre à
face da terra interpretar a guerra de dez mil anos entre cérebros
em termos que lhes são favoráveis."


outra vez de "O Tigre Branco", de Aravind Adiga

03 agosto, 2009

elefantes entre cabras e alfarrobeiras

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© Portugal, 2009

02 agosto, 2009

e a pequena história parece sempre extraordinária

"O corpo dum homem rico é como uma almofada de algodão
da melhor qualidade, branca, macia e sem marcas. Os
nossos
são diferentes. A coluna vertebral do meu pai era uma coroa
de nós, do género das que as mulheres usam nas aldeias
para tirar água dos poços; as clavículas descreviam uma curva
em alto-relevo à volta do pescoço, como uma coleira de cão;
golpes, incisões e cicatrizes, como pequenas marcas deixadas
por um chicote, percorriam-lhe o peito e a cintura, chegando-
-lhe abaixo dos ossos da bacia até às nádegas. A história dum
homem pobre está-lhe escrita no corpo, com uma caneta de
ponta aguçada."



em "O Tigre Branco" de Aravind Adiga

01 agosto, 2009

a gosto (regresso)

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