06 agosto, 2009

a guerra ganha

"Alguns dos livros estavam escritos em urdu, a língua dos muçul-
manos — que é só pontos e rabiscos, como se um corvo tivesse
molhado as patas em tinta preta e as tivesse pressionado contra a
folha. Estava eu a folhear um destes livros quando o vendedor me
perguntou: — Você sabe ler urdu?
Era um muçulmano já de idade, com uma cara negra como breu
perlada de suor, como as folhas das begónias depois de chover, e
uma barba branca comprida.
Eu perguntei-lhe por minha vez: — E
você sabe?
Ele abriu um livro, clareou a voz e leu: — " Tu andaste anos à pro-
cura da chave." Compreendeu? — Cravou os olhos em mim, rugas
profundas na testa negra.
— Sim, meu tio muçulmano.
— Cale-se, seu mentiroso. Cale-se e ouça.
Clareou uma vez mais a voz.
— " Tu andaste anos à procura da chave./ Mas a porta esteve
sempre aberta!"
Fechou o livro. — A isto chama-se poesia. Agora desapareça-me
da vista.
— Por favor, tio muçulmano — supliquei-lhe. — Eu sou apenas o
filho dum condutor de riquexó vindo da Escuridão. Diga-me tudo
o que sabe a respeito da poesia. Quem é que escreveu esse poema?
Ele abanou a cabeça, mas eu continuei a bajulá-lo, a dizer-lhe que
bela barba ele tinha, que nunca tinha visto uma pele tão alva como
a dele (ah!), como era óbvio que ele não era um criador de porcos
convertido, mas um muçulmano de gema que chegara ali a flutuar
num tapete mágico vindo directamente de Meca, e ele resmungou
de satisfação. Leu-me mais um poema e outro ainda — e explicou-
-me a verdadeira história da poesia, que encerra uma espécie de
segredo, uma magia que apenas os homens sábios conhecem.
Senhor primeiro-ministro, não lhe estarei a dar nenhuma novida-
de se lhe disser que a história do mundo é a história duma guerra
de dez mil anos entre os cérebros dos ricos e dos pobres. Cada
facção está eternamente a tentar enganar a facção oposta; e assim
tem sido desde o início dos tempos. Os pobres vencem meia dúzia
de batalhas (as mijadelas nos vasos das plantas, os pontapés nos
cães de estimação, etc.), mas está claro que há dez mil anos que os
ricos têm a guerra ganha. É por isto que um dia, alguns homens
sábios, movidos por compaixão aos pobres, lhes deixaram sinais e
símbolos em poemas, que parecem versar sobre rosas, raparigas
bonitas e coisas do género, mas quando compreendidos correcta-
mente , revelam segredos que permitem ao homem mais pobre à
face da terra interpretar a guerra de dez mil anos entre cérebros
em termos que lhes são favoráveis."


outra vez de "O Tigre Branco", de Aravind Adiga

1 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

A mimi ofereceu-me este livro, já o li e gostei muito.
gostei de " o ler" outra vez aqui.
Beijos
Joana

08 agosto, 2009 00:55  

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