"James põe-se em pé, sorri, pede desculpa aos lavradores com uma li-
geira vénia. Pega nos jarros, dois em cada mão, e passa a porta das tra-
seiras da cozinha para um quarto frio, sem janelas, com uma caldeira, 
tubos e barris, onde o reverendo, quatro vezes por ano, procede ao fa-
brico da sua cerveja de mesa e onde a Sra Cole cria os seus vinhos cam-
pestres, garrafas arrumadas contra duas das paredes. A despeito do frio, 
Mary está ali sentada, muito quieta numa cadeira com assento de pa-
lha, aparentemente sem fazer nada. Uma candeia arde aos seus pés, 
que estão juntos, asseados como gatos. James tira a cerveja. Quando 
acaba diz:
— Vem daí. Aqui está frio, mesmo para ti.
Ela observa-o, os seus olhos, dois seixos negros enterrados.
— Não passam de pobres lavradores — diz ele. — Som e fúria. Não é 
nada. Não passa disto — levanta um dos jarros. — Anda sentar-te com 
o Sam e comigo à beira do fogo.
James leva a cerveja para a cozinha e pousa-a na mesa. Muito deseja 
sabê-la feliz, pelo menos contente.
— Aah! O vosso 'lixir da vida, Doutor. Salvou-nos da morte seca.
— Vivam os senhores. Saúde e felicidade.
— Não entornais coa gente?
— Se agradar à companhia.
— Bem falado, homem!
O jarro é passado em volta e cai cerveja na mesa a cada caneca.
— Um brinde, rapazes!
— Ao Rei!
— Ao lavrador George e ao velho Snuffy!
— À melhor cona da Cristandade!
— Nã rapazes — é Weedn Tull a falar. — Ao nosso doutor Dyer. Não foi 
feliz co nome, pois não — saudações à piada — mas como não tem que 
prestar contas a ninguém nem à cara-metade, nem pega na faca mais 
que para cortar o pão, salva mais vidas do que o outro em todo o reino!
O brinde é respondido. James diz:
— Generoso da vossa parte, meus senhores. Muito.
Uma voz pergunta:
— Onde está o Will Caggershot? Diz-nos um verso dos teus, Will. Diz 
o "Sally Salisbury".
A companhia põe-se a olhar para ele como rapazinhos da escola. 
Caggershot aclara a garganta.
Aqui jaz deitada por fim inactiva
Quem com afinco ao vício se entregou
A pobre Sally da morte escarnecida;
Não admira se o alento lhe faltou.
Atrás do prazer muito ela caprichou
E bem lhe parecia regalada a vida
Que inda lhe ia a meio quando se finou...
Detém-se, a olhar por cima das cabeças dos outros para o quarto da 
caldeira. Os outros torceram-se nos assentos para verem. James levan-
ta-se do banco da lareira, os braços abertos como se desejasse fisica-
mente reunir de novo a companhia.
— É apenas a Mary, meus senhores. Não é preciso interromperem as 
vossas canções.
— A gente sabe quem é, doutor.
Caggershot volta para o seu assento. Os lavradores mergulham os olhos 
no centro da mesa. James encolhe os ombros, vai junto de Mary e con-
du-la ao banco ao lado do de Sam. Lentamente, a conversa é retomada, 
como uma velha bomba de água temporariamente bloqueada. Bebem; 
enchem-se de novo os jarros. Mary é esquecida. Caggershot canta as 
suas canções, cada qual mais lasciva que a anterior. Depois Een Tull, 
irmão de Ween, claramente o lamentável bobo da festa, aponta o seu 
dedo trémulo a Mary dizendo:
— Atão a mulher, Dòtor, que mostre a cremalheira e tudo.
O pedido é secundado pelos outros e tão prontamente que é óbvio que 
Een se limitou a dizer o que os outros pensavam. James tinha chegado 
a temer esta viragem, mas tivera esperança de que se retivessem por 
respeito para com ele como "o Doutor" e como amigo do reverendo, 
como evidente protector de Mary. E ele é que tinha a culpa, ele é que 
a expusera. Põe-se de pé, de peito cheio.
— NADA DE BARRACA DOS MONSTROS, MEUS SENHORES!
Não há ninguém na sala, nem mesmo Mary, que tenha conhecido 
James Dyer como o jovem imaculado partido para a Rússia no Outono 
de 1767. Ninguém que o tenha visto todo elegante, com uma casaca 
de raios e coriscos, a apertar a mão ao embaixador imperial como se 
fosse o embaixador a dever sentir-se honrado pelo contacto. Ninguém, 
sequer, que imaginasse tal coisa, salvo talvez Sam, que arrumava 
mentalmente lindos títeres dentro de uma espécie de história. De 
momento, os lavradores estão de todo inabaláveis.
O sossego é quebrado por um som como a chuva a começar. Mary 
vai até ao topo da mesa, as mãos singelamente juntas na cintura, 
como quem vai cantar para eles. Espera, naquela sua segura teatra-
lidade, a seguir abre os lábios num esgar, de forma que os seus dentes 
da frente, muito desbastados, uma fila de pontos, ficam a ver-se até 
às gengivas. Da mesa sobe um murmúrio de espanto. Aquilo é muito 
melhor do que uma ovelha com duas cabeças ou um peixe matemático 
numa caixa mal cheirosa, numa feira rural. As expressões deles são tão 
ridículas, alguns deles mimando involuntariamente o esgar de Mary, 
que a ira de James se transforma em riso, um riso sonoro, libertador, 
que podia ter despertado algumas palavras azedas não tivesse o reve-
rendo entrado na cozinha, o rosto, a despeito da sangria, perigosa-
mente inchado após cinco horas de comida, bebida e cartas. Fita 
intrigado James, depois dirige-se aos lavradores.
— Meus senhores, sinto que não devo reter-vos por mais tempo. Eu 
próprio sou lavrador o bastante para saber que deveis estar ansiosos 
por voltardes a vossas casas.
O aparecimento de um superior, mesmo tão destituído de ouropéis 
como um pároco, traz uma sobriedade desagradável. Batem-se os 
cachimbos, escoa-se a última cerveja das canecas. As expressões 
dos homens parecem já antecipar as sensações frias que a madrugada 
seguinte trará: a luta renovada com animais recalcitrantes, calcorrear 
campos quietos às escuras como o primeiro ou último homem na terra."
(excerto de "A Dor Industriosa" de Andrew Miller)