27 fevereiro, 2009
Seco. Vazio.
Espécie de luto pelos blogues fechados pelos amigos.
Eu próprio meio transmigrado.
Seco. Como um soco
este silêncio que me apetece.
Mas não fecharei este caderno.
Eu não.
26 fevereiro, 2009
25 fevereiro, 2009
24 fevereiro, 2009
samba-canção
de Ana Cristina César
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone — taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...
Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone — taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...
23 fevereiro, 2009
22 fevereiro, 2009
19 fevereiro, 2009
(a escrita perfeita)
A aranha com fome,
para a frente e para trás
entre a viga e a cruz.
(haiku de Tsuda Kiyoko)
para a frente e para trás
entre a viga e a cruz.
(haiku de Tsuda Kiyoko)
18 fevereiro, 2009
puzzle
de Casimiro de Brito
O dedo finco
na imaginação
que dedo se o dedo
o sinto na mão?
A memória dispo
mordo e contemplo
que memória se ela
se não mede em tempo?
A palavra incido
na palma da mão
mas como se a palavra
não tem dimensão?
O dedo finco
na imaginação
que dedo se o dedo
o sinto na mão?
A memória dispo
mordo e contemplo
que memória se ela
se não mede em tempo?
A palavra incido
na palma da mão
mas como se a palavra
não tem dimensão?
17 fevereiro, 2009
miss jane
"How do you react when someone calls you Madame
and you feel like an older adolescent somehow? Will
anybody want to have these hands that have been
worn by time? A stomach that has had babies? I want
to be naked in front of somebody. Is it too much to
16 fevereiro, 2009
dar forma ao vazio
de António Ramos Rosa
Alguém está no ângulo da sombra. Alguém
que tenazmente espera ou simplesmente está.
Suponho-o ou suscito-o na sua ausência
num espaço indemonstrável. Sei que ele é completo
e se completa na forma do vazio que quero dar-lhe.
Eis que forço a muralha e fracturo o futuro.
Ele sairá da sombra para ser designado antes da noite.
E eu escreverei ao nível dos tecidos e das fibras.
Lenta claridade sobre a frescura das folhas.
Estou no fundo do ar e escuto imóvel
as estátuas de água que em nuvens se evaporam.
Sinto que o braço ondula e é ele a ondulação.
E sou eu que sou cinza que escrevo o sopro dele.
E ele diz que é só o ar, a fábula do ar.
Alguém está no ângulo da sombra. Alguém
que tenazmente espera ou simplesmente está.
Suponho-o ou suscito-o na sua ausência
num espaço indemonstrável. Sei que ele é completo
e se completa na forma do vazio que quero dar-lhe.
Eis que forço a muralha e fracturo o futuro.
Ele sairá da sombra para ser designado antes da noite.
E eu escreverei ao nível dos tecidos e das fibras.
Lenta claridade sobre a frescura das folhas.
Estou no fundo do ar e escuto imóvel
as estátuas de água que em nuvens se evaporam.
Sinto que o braço ondula e é ele a ondulação.
E sou eu que sou cinza que escrevo o sopro dele.
E ele diz que é só o ar, a fábula do ar.
15 fevereiro, 2009
natureza morta
de Ed Leeflang
Numa tranquila manhã de domingo, vê-se
sobre a mesa a natureza morta, um arquipélago
de coisas a que tenho apego, um continente,
uma misturada, criatura de criadores que
nenhum incentivo pode já consolar,
a quem nem falar-se ou dar afagos se pode.
Dessous de cobre em forma de coração,
um copo bonacheirão, um prato para alhos
e castanhas; duas faquinhas de fruta aguçadas.
O livro enfunado onde há uma semana não leio.
A jarra das flores está vazia e como que sugere
um cozinhado, tal um pote de barro. E depois
um trio de açafrões — ainda por abrir —,
onde entretanto continua activo
um muito tímido mas resoluto deus
contra a bruta pulsão da morte, que leva o que
pretende viver quieto a hesitar, até cair de podre.
(da Antologia da Poesia Neerlandesa do Século Vinte,
"Uma Migalha Na Saia Do Universo"
Numa tranquila manhã de domingo, vê-se
sobre a mesa a natureza morta, um arquipélago
de coisas a que tenho apego, um continente,
uma misturada, criatura de criadores que
nenhum incentivo pode já consolar,
a quem nem falar-se ou dar afagos se pode.
Dessous de cobre em forma de coração,
um copo bonacheirão, um prato para alhos
e castanhas; duas faquinhas de fruta aguçadas.
O livro enfunado onde há uma semana não leio.
A jarra das flores está vazia e como que sugere
um cozinhado, tal um pote de barro. E depois
um trio de açafrões — ainda por abrir —,
onde entretanto continua activo
um muito tímido mas resoluto deus
contra a bruta pulsão da morte, que leva o que
pretende viver quieto a hesitar, até cair de podre.
(da Antologia da Poesia Neerlandesa do Século Vinte,
"Uma Migalha Na Saia Do Universo"
13 fevereiro, 2009
12 fevereiro, 2009
11 fevereiro, 2009
10 fevereiro, 2009
ácidas memórias
"Three couples, including Syd Barrett and myself, went to this
Palavras de Prince Stash à revista Mojo. Filho do célebre pintor
cottage in Wales where we decided to welcome in the new year
[1968] with an acid trip. It turned out to be one of the most
intense experiences of my life. We formed a circle, held hands
and a visible energy circle of light soon began to flow in one
direction, while another flowed in the other direction. As they
grew faster, there was an exhilarating sense of being on this
incredible ride, with the energy taking bits of us and painting
them onto the next person. Then Syd's girlfriend let go and it
was as if the cottage had tumbled out of a box and its contents
were flying everywhere. Another order of reality opened up.
And Syd was no longer Syd, but a near life-size teddy bear
with Syd's head on it. My girlfriend could see it too. She said,
'Syd, what's the matter with you? You look like a teddy bear.'
He grabbed an acoustic guitar and started to sing She Loves
You completely out of tune. And from that moment, Syd never
returned to what could've been described as his normal self
again."
Palavras de Prince Stash à revista Mojo. Filho do célebre pintor
Balthus e com ascendência genética que o liga a Lord Byron e
George Bataille (Byron, Bataille e Balthus — todo um programa!),
este princípe dandy e também músico, foi personagem reinante
nos animados e psicadélicos anos da Swimming London, onde
privou, como não podia deixar de ser, com os Rolling Stones e os
Beatles. Terá sido mesmo o primeiro homem com quem a bela
Marianne Faithfull dormiu, segundo confissões da própria, quando
era ainda namorada de Jagger.
Este esteta de (pro)vocação hedonista, entre outras residências
espalhadas pelo mundo, vive hoje em Itália num castelo do
século quinze e foi por estes dias motivo de um documentário na
BBC Radio 4.
09 fevereiro, 2009
a contar pelos dedos
© 2009
pedem-me quinze blogues.
parte da minha vida, portanto.
escrever para a blogosfera. essa espécie de mar de mil
escrever para a blogosfera. essa espécie de mar de mil
tentações. esse teatro anatómico dos meus gostos e dores,
de segredos e humores. esse dicotómico regabofe de desejo
e remorso.
a luz acesa de tantas palavras.
penso: isto é como se me perguntassem que discos levaria
para uma ilha deserta. que mulheres.
(tantos caminhos para aqui chegar. e bastavam quatro para
penso: isto é como se me perguntassem que discos levaria
para uma ilha deserta. que mulheres.
(isto é quase uma armadilha.)
mas para uma ilha deserta não levaria blogues. apenas livros e
mas para uma ilha deserta não levaria blogues. apenas livros e
música. a escrita cantada, sussurrada, gritada.
entre tantas outras, talvez levasse meia dúzia de canções do
entre tantas outras, talvez levasse meia dúzia de canções do
caetano e do chico. ana de amsterdam seria sempre uma delas.
a voz e o piano de nina simone, também. essa vontade indómita
antes a incessante viagem, perdido de porto em porto, de sonho
em sonho, incansável delírio nómada.
talvez o mundo fosse perfeito se fôssemos todos exilados de nós
mesmos, em permanente diáspora blasée, amorosamente
talvez o mundo fosse perfeito se fôssemos todos exilados de nós
mesmos, em permanente diáspora blasée, amorosamente
comestíveis. um mundo em que toda a poesia soubesse a limão
e que a primavera fosse esplendor em todos os corpos.
bem sei que na natureza da espécie está a origem do mal,
mas num mundo assim perfeito todos os dias podiam ser
bem sei que na natureza da espécie está a origem do mal,
mas num mundo assim perfeito todos os dias podiam ser
(tantos caminhos para aqui chegar. e bastavam quatro para
nomear quem me desafiou.)
08 fevereiro, 2009
os mortos do inverno
de "O médico inverosímil" de Ramón Gómez de la Serna
Quando chega este inverno de Madrid que começa nos últimos
Quando chega este inverno de Madrid que começa nos últimos
dias de Setembro, há uns seres que se dão como mortos.
São homens de difícil cura. Sentem-se apanhados, prisioneiros,
São homens de difícil cura. Sentem-se apanhados, prisioneiros,
mortos. De antemão se entregam.
É muito difícil curar estes doentes que mostram um grande
É muito difícil curar estes doentes que mostram um grande
medo ao inverno iniciado. Morrem copiosamente. Dizem logo,
no primeiro dia mais fresco: Que frio vai estar este inverno! Como
o frio aperta!
Acautelam-se quanto à invernia em que hão-de morrer, mas têm
a certeza de ver em qualquer enterro o seu próprio funeral.
Quando por acaso me aconteceu ir vê-los, verifiquei que de ante-
Quando por acaso me aconteceu ir vê-los, verifiquei que de ante-
mão estavam mortos, que se faziam mortos, que esperavam a hora
com urgência.
Queriam deixar a braseira e o quarto, que até com enchumaços fica
Queriam deixar a braseira e o quarto, que até com enchumaços fica
cheio de vento e de frio. Mas impedi-los para quê?
Tinham circundado os olhos pelas coisas uma última vez, tinham-se
Tinham circundado os olhos pelas coisas uma última vez, tinham-se
despedido de todo, tinham dito adeus para sempre aos amigos.
Estes doentes do início do outono madrileno, que chamam urgente-
Estes doentes do início do outono madrileno, que chamam urgente-
mente o médico, não têm remédio nenhum, são mortos voluntários,
os que encomendam logo os primeiros caixões.
A maneira como tiveram de dar a vida no dia frio foi tão forte que já
A maneira como tiveram de dar a vida no dia frio foi tão forte que já
não podem resgatá-la.
— No fim de contas — disse eu para comigo perante estes doentes
— No fim de contas — disse eu para comigo perante estes doentes
impossíveis — é melhor a cooperação voluntária com a morte do que
a cooperação obrigatória... O homem que assim se rende à morte é
porque vai descansar, porque se despede a horas certas, disfrutando
o panorama da cidade de Madrid coberta pelas nuvens e pelos capuzes
dos guarda-chuvas.
07 fevereiro, 2009
06 fevereiro, 2009
05 fevereiro, 2009
Programa
de Tom Lanoye, retirado de "Uma migalha na saia do universo
— Antologia da Poesia Neerlandesa do Século Vinte"
(Assírio & Alvim 1997)
Sei eu lá bem que aspecto a poesia
deva ter. Não esse tipo paralisado,
monocórdico. É uma coisa que não
aprecio muito. O mesmo tom repetido
até ficar gasto, e depois chamar isso
"coerência formal", ou "uma voz
própria", esse género de tretas.
Não, isso é pouco do meu gosto.
Então antes a guloseima favorita
da minha infância. O rebuçado
mágico. A gente vai chupando,
chupando, estão sempre a aparecer
outras cores e, mal uma pessoa
se distrai, não sobra mais
nada. É exactamente isso, acho
eu. Uma coisa assim. É ela por ela.
(Assírio & Alvim 1997)
Sei eu lá bem que aspecto a poesia
deva ter. Não esse tipo paralisado,
monocórdico. É uma coisa que não
aprecio muito. O mesmo tom repetido
até ficar gasto, e depois chamar isso
"coerência formal", ou "uma voz
própria", esse género de tretas.
Não, isso é pouco do meu gosto.
Então antes a guloseima favorita
da minha infância. O rebuçado
mágico. A gente vai chupando,
chupando, estão sempre a aparecer
outras cores e, mal uma pessoa
se distrai, não sobra mais
nada. É exactamente isso, acho
eu. Uma coisa assim. É ela por ela.
04 fevereiro, 2009
03 fevereiro, 2009
o poema
de Carlos William Carlos
Tudo está
no som. Uma canção.
Raramente uma canção. Deveria
ser uma canção — com
pormenores, vespas,
uma genciana — algo
imediato, tesouras
abertas, olhos
de mulher — centrífuga
ao despertar, centrípeta
Tudo está
no som. Uma canção.
Raramente uma canção. Deveria
ser uma canção — com
pormenores, vespas,
uma genciana — algo
imediato, tesouras
abertas, olhos
de mulher — centrífuga
ao despertar, centrípeta