23 fevereiro, 2010

o cão da tribo

de José Agostinho Baptista


E vieram as chuvas com as suas navalhas de
água,
onde perco a vida.
E,
da vida já distante, regresso à sua caudalosa
ruína, lambendo as feridas.
Seja pois, o cão da amaldiçoada tribo,
apagadas as fogueiras no sonho dos dançarinos.
Vagueio ao longo das tendas e é quase
inverno,
escasso o cereal.
Voltados para a inundação,
os moribundos clamam pelas irmãs da
planície.
A minha cauda roça a constelação do meu
nome.
Aspiro um inconfundível odor.
O sangue tinge o rio lá em baixo, quando
te deitas sobre as dunas,
devagar,
cruelmente resignada.
A discórdia voltará aos lares.

17 fevereiro, 2010

o bloguista pede desculpas por se pôr na voz de outros*

"Às vezes chegava em casa tarde da noite e encontrava
minha mulherzinha dormindo. Uma criança de menos de
20 anos. Lindas pernas, lindo busto, querendo apenas
aprender a arte de viver mais simplesmente; não querendo
atacar convenções, mas aceitando verdades absolutas que
ainda não haviam começado a esquartejá-la. Eu tirava
meu terno suado. Tentava lavar-me, mas faltava água.
Em silêncio, para não acordá-la, deitava-me na cama.
Ela precisava de amor e de carinho. Mas estaria eu em
condições de dar? Também eu era uma criança tentando
jogar um jogo perigoso para mim, fora de casa. E era eu
quem ela pretendia ter como professor de vida. Como
ousar beijá-la, se durante todo o dia eu nada mais fizera
senão fracassar no jogo da vida? Como ousar ter desejo?
Sentir o sexo, com tanta culpa e tanta falta de talento
para o jogo da vida sobre os ombros? Medo de tocá-la.
Medo de de não poder amá-la e, ainda assim, amando-a
com toda a intensidade. Sua fragilidade, porém, era o
espelho da minha própria fragilidade. Como explicar-lhe
minha falta de condições para o jogo do dinheiro, que é o
jogo da vida?"


excerto de "O Acrobata Pede Desculpas E Cai" de
Fausto Wolff

* Obrigado, Moloi, pela dádiva.

16 fevereiro, 2010

manhã de carnaval


Maysa na TV, Japão 1959

15 fevereiro, 2010

a maior, a notável pequena



Também devidamente a comemorar os cinco anos de existência
desta espécie de cartola mágica que é o you tube. De facto, uma
invenção que mudou o mundo. A marca primeira deste novo
século.

08 fevereiro, 2010

seguramente eléctricos (destes já não se fazem)

07 fevereiro, 2010

Broadway

de J. M. Fonollosa
em "Cidade do Homem: New York"




O amor é um jogo apaixonante
e o melhor substituto do amor.
Daquele amor imenso e singular
que encontramos várias vezes tempo fora.

O recíproco amor é o mais belo.
Ambos sabemos. Mas muito grande
é o vazio aberto entre o amor
já ido e essoutro amor ainda não chegado.

Porquê enchê-lo, pois, com a tristeza,
sendo possível cumulá-lo de sorrisos?

Ocultada que esteja a luz do sol, podem os faróis
do carro iluminar a estrada.
E enquanto não chega outro amor querendo o nosso,
brinquemos, só de brinquedo, a apaixonar-nos.

Brinquemos a amar-nos, sem nos amarmos,
até ao dia em que um de nós
volte a sentir amor por outro alguém.
O amor é bonito até como brinquedo.

03 fevereiro, 2010

a rua da estrada

"A Rua da Estrada é uma coisa mal-amada pela mesma razão
de muitas outras coisas cuja identidade é flutuante, não
encontrando estabilidade por aquilo que é mas sim pelo que
deixou de ser ou ainda não é. É como um híbrido com a sua
identidade cruzada e manipulada, ou ainda pior, como um
transgénico que incomoda pelo simples facto de transgredir
aquilo que o originou, no limite, a obra do próprio Criador.
A estrada-rua é o elemento mais banal das formas e processos
de urbanização em Portugal, nos antípodas de qualquer ideal-tipo
do que seja a boa e genuína cidade. Não vale a pena apostar tudo
na idolatria da cidade histórica, no trauma de se ter perdido isto e
aquilo e, desse trauma que ficou no rol das perdas, já não se ter
discernimento sequer para avaliar se aquilo ainda é uma cidade
ou se é um simulacro cénico limpinho e abrilhantado para mais
um parque temático com programação contínua para o negócio
turístico. Assim está a ficar Óbidos. Não há problema. As cidades
também se prestam a isso mas não devem é ser só isso. (...)"

Photobucket

Um livro imperdível, extraordinariamente lúcido e bem-disposto,
do geógrafo Álvaro Domingues, brevemente numa qualquer esquina
duma rua perto de si. Quiçá, estrada.
mais um fonema
sem pecado que não
escapou a sócrates.

02 fevereiro, 2010

mais um poema sem pecado

No recreio havia um menino que não brincava
com outros meninos
O padre teve um brilho de descobrimento nos olhos
— POETA!
O padre foi até ele:
— Pequeno, por que não brinca com os seus colegas?
— É que estou com uma baita dor de barriga
desse feijão bichado.


Manoel de Barros
em "Poemas Concebidos Sem Pecado"