31 outubro, 2009
29 outubro, 2009
portugal no seu melhor
"A primeira coisa que aprendi foi que isso do amor incondicional de
mãe não existe. Se soubesse a quantidade de mães que abandonam
os filhos por esse país fora...
Havia sempre muito mais cartas de filhos à procura de pais que de
pais à procura de filhos. E quando os pais eram encontrados muitas
vezes não mostravam alegria ou arrependimento ou culpa pelo que
tinham feito. Isso chocou-me muito. A outra coisa que aprendi foi
que há por aí muitos óbitos não registados, alguns casos de bigamia
e pessoas que têm no registo pais que não são os biológicos... sem
que tenha havido adopção."
(palavras de Lurdes Gândara, jornalista do antigo programa televisivo
da SIC "Ponto de Encontro", retiradas de um artigo de Sónia Morais
Santos para o jornal "i" do passado fim-de-semana)
mãe não existe. Se soubesse a quantidade de mães que abandonam
os filhos por esse país fora...
Havia sempre muito mais cartas de filhos à procura de pais que de
pais à procura de filhos. E quando os pais eram encontrados muitas
vezes não mostravam alegria ou arrependimento ou culpa pelo que
tinham feito. Isso chocou-me muito. A outra coisa que aprendi foi
que há por aí muitos óbitos não registados, alguns casos de bigamia
e pessoas que têm no registo pais que não são os biológicos... sem
que tenha havido adopção."
(palavras de Lurdes Gândara, jornalista do antigo programa televisivo
da SIC "Ponto de Encontro", retiradas de um artigo de Sónia Morais
Santos para o jornal "i" do passado fim-de-semana)
25 outubro, 2009
20 outubro, 2009
o inesgotável tema do nobel
Expresso — Foi hoje anunciado o vencedor do Prémio Nobel da
Literatura.
Philip Roth — Quem ganhou?
E. — Herta Müller.
P.R. — Nunca ouvi falar. Você já ouviu?
E. — Não, até hoje de manhã... Mas o seu próprio nome aparece
constantemente como um potencial vencedor...
P.R. — Isso é um erro. O meu nome é falado na imprensa, mas não
na Suécia. Isso é apenas falatório.
E. — Dá alguma importância ao prémio?
P.R. — No ano passado, foi atribuído a Harold Pinter, e ele é um
óptimo escritor [Na verdade, Pinter recebeu o Nobel em 2005].
Há dois anos, o prémio foi para Doris Lessing, que também é uma
escritora muito boa. Mas, no cômputo geral, o Nobel não vai para
grande escritores.
E. — Conhece o trabalho de José Saramago?
P.R. — Não, não conheço.
E. — Conhece algum escritor português?
P.R. — Não. Conheço a obra do brasileiro Machado de Assis. Não
leio muitos autores contemporâneos. Nos últimos anos, tenho relido
muitos escritores que li quando estava na casa dos 20 anos. Como,
por exemplo, o Hemingway...
[Rapidamente o tema do Nobel esgotou-se. Roth, que venceu todos
os prémios que há para vencer, à excepção do Nobel, não demonstrou
nenhuma expressão de desapontamento ou de tristeza face ao anúncio
da vitória de Herta Müller.]
(excerto da entrevista de João Luz a Philip Roth publicada no
Expresso de 17 de Outubro )
Literatura.
Philip Roth — Quem ganhou?
E. — Herta Müller.
P.R. — Nunca ouvi falar. Você já ouviu?
E. — Não, até hoje de manhã... Mas o seu próprio nome aparece
constantemente como um potencial vencedor...
P.R. — Isso é um erro. O meu nome é falado na imprensa, mas não
na Suécia. Isso é apenas falatório.
E. — Dá alguma importância ao prémio?
P.R. — No ano passado, foi atribuído a Harold Pinter, e ele é um
óptimo escritor [Na verdade, Pinter recebeu o Nobel em 2005].
Há dois anos, o prémio foi para Doris Lessing, que também é uma
escritora muito boa. Mas, no cômputo geral, o Nobel não vai para
grande escritores.
E. — Conhece o trabalho de José Saramago?
P.R. — Não, não conheço.
E. — Conhece algum escritor português?
P.R. — Não. Conheço a obra do brasileiro Machado de Assis. Não
leio muitos autores contemporâneos. Nos últimos anos, tenho relido
muitos escritores que li quando estava na casa dos 20 anos. Como,
por exemplo, o Hemingway...
[Rapidamente o tema do Nobel esgotou-se. Roth, que venceu todos
os prémios que há para vencer, à excepção do Nobel, não demonstrou
nenhuma expressão de desapontamento ou de tristeza face ao anúncio
da vitória de Herta Müller.]
(excerto da entrevista de João Luz a Philip Roth publicada no
Expresso de 17 de Outubro )
18 outubro, 2009
14 outubro, 2009
o homem é um grande faisão sobre a terra
" Windisch vai empurrando a bicicleta. Olha para a lua. O guarda-
-nocturno diz em voz baixa, mastigando: "O homem é um grande
faisão sobre a terra." Windisch levanta o saco e coloca-o na bicicleta.
" O homemm é forte, diz ele, "mais forte que as bestas."
O jornal tem uma ponta levantada. O vento parece uma mão a em-
purrar. O guarda-nocturno põe a faca sobre o banco. "Passei pelas
brasas", diz ele. Windisch curva-se sobre a bicicleta. Ergue a cabeça.
"Eu acordei-te". "Não foste tu", diz o guarda-nocturno, "a minha
mulher é que me acordou." Sacode as migalhas de pão do casaco.
"Já sabia que não conseguia dormir. A lua vai cheia. Sonhei com o
sapo seco. Sentia um cansaço de morte. E não conseguia ir dormir. O
sapo estava deitado na cama. Falei com a minha mulher. O sapo
olhava com os olhos da minha mulher. Tinha a trança da minha
mulher. Trazia a camisa de dormir dela vestida e enrodilhada até à
barriga. Eu disse-lhe, tapa-te que tens as coxas murchas. Eu disse
isso à minha mulher. O sapo tapou as coxas com a camisa de dormir.
Eu sentei-me na cadeira junto da cama. O sapo sorriu com a boca da
minha mulher. A cadeira chia, disse ele. A cadeira não estava a chiar.
O sapo pôs a trança da minha mulher sobre o ombro. A trança era tão
comprida como a camisa. Eu disse: o teu cabelo cresceu. O sapo er-
gueu a cabeça e gritou: Tu estás bêbado, não tarda que caias da ca-
deira abaixo."
Uma nuvem mancha a lua de vermelho. Windisch encosta-se à parede
da azenha. "O ser humano é estúpido", diz o guarda-nocturno, "e
está sempre pronto a perdoar." O cão come um pedaço do coirato. "A
ela, perdoei tudo", diz o guarda-nocturno. "Perdoei-lhe o padeiro.
Perdoei-lhe o comportamento na cidade." Passa as pontas dos dedos
pela lâmina da faca: "A aldeia em peso fez pouco de mim." Windisch
suspira. "Eu nem conseguia olhá-la nos olhos", diz o guarda-nocturno:
"Só uma coisa não consegui perdoar-lhe: é que tivesse morrido tão
depressa como se não tivesse ninguém. Isso é que não lhe perdoei."
"Sabe Deus" diz Windisch, "para que é que elas existem, as mulheres."
O guarda-nocturno encolhe os ombros: "Para nós é que não" diz ele.
"Nem para mim, nem para ti. Não sei para quem." O guarda-nocturno
faz uma festa ao cão. "E as filhas", diz Windisch, "sabe Deus, também
elas se tornam mulheres."
(excerto de "O homem é um grande faisão sobre a terra" de Herta Müller)
-nocturno diz em voz baixa, mastigando: "O homem é um grande
faisão sobre a terra." Windisch levanta o saco e coloca-o na bicicleta.
" O homemm é forte, diz ele, "mais forte que as bestas."
O jornal tem uma ponta levantada. O vento parece uma mão a em-
purrar. O guarda-nocturno põe a faca sobre o banco. "Passei pelas
brasas", diz ele. Windisch curva-se sobre a bicicleta. Ergue a cabeça.
"Eu acordei-te". "Não foste tu", diz o guarda-nocturno, "a minha
mulher é que me acordou." Sacode as migalhas de pão do casaco.
"Já sabia que não conseguia dormir. A lua vai cheia. Sonhei com o
sapo seco. Sentia um cansaço de morte. E não conseguia ir dormir. O
sapo estava deitado na cama. Falei com a minha mulher. O sapo
olhava com os olhos da minha mulher. Tinha a trança da minha
mulher. Trazia a camisa de dormir dela vestida e enrodilhada até à
barriga. Eu disse-lhe, tapa-te que tens as coxas murchas. Eu disse
isso à minha mulher. O sapo tapou as coxas com a camisa de dormir.
Eu sentei-me na cadeira junto da cama. O sapo sorriu com a boca da
minha mulher. A cadeira chia, disse ele. A cadeira não estava a chiar.
O sapo pôs a trança da minha mulher sobre o ombro. A trança era tão
comprida como a camisa. Eu disse: o teu cabelo cresceu. O sapo er-
gueu a cabeça e gritou: Tu estás bêbado, não tarda que caias da ca-
deira abaixo."
Uma nuvem mancha a lua de vermelho. Windisch encosta-se à parede
da azenha. "O ser humano é estúpido", diz o guarda-nocturno, "e
está sempre pronto a perdoar." O cão come um pedaço do coirato. "A
ela, perdoei tudo", diz o guarda-nocturno. "Perdoei-lhe o padeiro.
Perdoei-lhe o comportamento na cidade." Passa as pontas dos dedos
pela lâmina da faca: "A aldeia em peso fez pouco de mim." Windisch
suspira. "Eu nem conseguia olhá-la nos olhos", diz o guarda-nocturno:
"Só uma coisa não consegui perdoar-lhe: é que tivesse morrido tão
depressa como se não tivesse ninguém. Isso é que não lhe perdoei."
"Sabe Deus" diz Windisch, "para que é que elas existem, as mulheres."
O guarda-nocturno encolhe os ombros: "Para nós é que não" diz ele.
"Nem para mim, nem para ti. Não sei para quem." O guarda-nocturno
faz uma festa ao cão. "E as filhas", diz Windisch, "sabe Deus, também
elas se tornam mulheres."
(excerto de "O homem é um grande faisão sobre a terra" de Herta Müller)
13 outubro, 2009
08 outubro, 2009
o nobel é uma grande distinção sobre um homem
Não sei porque deixo, por vezes, palavras cravadas no corpo
dos livros. Talvez seja essa crescente necessidade de registar a
passagem do tempo. Uma espécie de substituição da esburacada
memória que parece esfumar-se sem apelo...
Ninguém parece conhecê-la mas eu sei que a li. Chego a casa,
procuro na estante. Demoro algum tempo, tinha a impressão que
a lombada não era tão estreita.
" O homem é um grande faisão sobre a terra".
19.4.93, o azul simples de um esferográfica. Primeira edição da
Cotovia. Modestos mil e quinhentos exemplares imprimidos em
Viseu. Creio tê-los visto, alguns deles, ao longo destes anos, ao
desbarato por toda a sorte de feiras do livro. Destino muito comum.
E um dia vem o Nobel para tirá-los do esquecimento, do recôndito
da mais esconsa prateleira, do pó pouco diáfano dos armazéns.
Tenho, portanto, o livro. Sou um dos felizes contemplados.
Relê-lo-ei. Deixo-vos um excerto.
"Quando Amalie tinha sete anos, Rudi atravessou com ela o
milheiral. Levou-a até ao fundo do quintal. "O milho é a flor-
esta", disse ele. Rudi foi com Amalie para o celeiro. Ele disse:
"O celeiro é o castelo."
No celeiro havia uma pipa vazia. Rudi e Amalie meteram-se
na pipa. "A pipa é a tua cama", disse Rudi. Pôs uma coroa de
bardanas secas no cabelo de Amalie. "Tu tens uma coroa de
espinhos", disse ele. "Estás enfeitiçada. Amo-te. Tens de so-
frer."
Rudi tinha o bolso do casaco cheio de cacos de vidro colorido.
Colocou os bocados de vidro na borda da pipa. Os cacos cin-
tilavam. Amalie sentou-se no fundo da pipa. Rudi ajoelhou-se
à sua frente. Levantou-lhe o vestido. "Bebo o teu leite", disse
Rudi. Chupou os mamilos de Amalie. Amalie fechou os olhos.
Rudi mordeu-lhe os pequenos bicos castanhos.
Os mamilos de Amalie incharam. Amalie chorou. Rudi foi para
o campo pelo fundo do quintal. Amalie correu para casa.
Os ouriços da bardana ficaram-lhe colados ao cabelo. Estavam
enrolados. A mulher de Windisch cortou com uma tesoura as
pontas de cabelo embaraçado. Lavou os mamilos de Amalie
com chá de macela. "Não podes voltar a brincar com ele", disse
ela. "O filho do peleiro é maluco. Por causa de tanto animal
empalhado não regula bem da cabeça."
Windisch abanava a cabeça. "Amalie ainda nos há-de enver-
gonhar", disse ele."
dos livros. Talvez seja essa crescente necessidade de registar a
passagem do tempo. Uma espécie de substituição da esburacada
memória que parece esfumar-se sem apelo...
Ninguém parece conhecê-la mas eu sei que a li. Chego a casa,
procuro na estante. Demoro algum tempo, tinha a impressão que
a lombada não era tão estreita.
" O homem é um grande faisão sobre a terra".
19.4.93, o azul simples de um esferográfica. Primeira edição da
Cotovia. Modestos mil e quinhentos exemplares imprimidos em
Viseu. Creio tê-los visto, alguns deles, ao longo destes anos, ao
desbarato por toda a sorte de feiras do livro. Destino muito comum.
E um dia vem o Nobel para tirá-los do esquecimento, do recôndito
da mais esconsa prateleira, do pó pouco diáfano dos armazéns.
Tenho, portanto, o livro. Sou um dos felizes contemplados.
Relê-lo-ei. Deixo-vos um excerto.
"Quando Amalie tinha sete anos, Rudi atravessou com ela o
milheiral. Levou-a até ao fundo do quintal. "O milho é a flor-
esta", disse ele. Rudi foi com Amalie para o celeiro. Ele disse:
"O celeiro é o castelo."
No celeiro havia uma pipa vazia. Rudi e Amalie meteram-se
na pipa. "A pipa é a tua cama", disse Rudi. Pôs uma coroa de
bardanas secas no cabelo de Amalie. "Tu tens uma coroa de
espinhos", disse ele. "Estás enfeitiçada. Amo-te. Tens de so-
frer."
Rudi tinha o bolso do casaco cheio de cacos de vidro colorido.
Colocou os bocados de vidro na borda da pipa. Os cacos cin-
tilavam. Amalie sentou-se no fundo da pipa. Rudi ajoelhou-se
à sua frente. Levantou-lhe o vestido. "Bebo o teu leite", disse
Rudi. Chupou os mamilos de Amalie. Amalie fechou os olhos.
Rudi mordeu-lhe os pequenos bicos castanhos.
Os mamilos de Amalie incharam. Amalie chorou. Rudi foi para
o campo pelo fundo do quintal. Amalie correu para casa.
Os ouriços da bardana ficaram-lhe colados ao cabelo. Estavam
enrolados. A mulher de Windisch cortou com uma tesoura as
pontas de cabelo embaraçado. Lavou os mamilos de Amalie
com chá de macela. "Não podes voltar a brincar com ele", disse
ela. "O filho do peleiro é maluco. Por causa de tanto animal
empalhado não regula bem da cabeça."
Windisch abanava a cabeça. "Amalie ainda nos há-de enver-
gonhar", disse ele."