14 outubro, 2009

o homem é um grande faisão sobre a terra

" Windisch vai empurrando a bicicleta. Olha para a lua. O guarda-
-nocturno diz em voz baixa, mastigando: "O homem é um grande
faisão sobre a terra." Windisch levanta o saco e coloca-o na bicicleta.
" O homemm é forte, diz ele, "mais forte que as bestas."
O jornal tem uma ponta levantada. O vento parece uma mão a em-
purrar. O guarda-nocturno põe a faca sobre o banco. "Passei pelas
brasas", diz ele. Windisch curva-se sobre a bicicleta. Ergue a cabeça.
"Eu acordei-te". "Não foste tu", diz o guarda-nocturno, "a minha
mulher é que me acordou." Sacode as migalhas de pão do casaco.
"Já sabia que não conseguia dormir. A lua vai cheia. Sonhei com o
sapo seco. Sentia um cansaço de morte. E não conseguia ir dormir. O
sapo estava deitado na cama. Falei com a minha mulher. O sapo
olhava com os olhos da minha mulher. Tinha a trança da minha
mulher. Trazia a camisa de dormir dela vestida e enrodilhada até à
barriga. Eu disse-lhe, tapa-te que tens as coxas murchas. Eu disse
isso à minha mulher. O sapo tapou as coxas com a camisa de dormir.
Eu sentei-me na cadeira junto da cama. O sapo sorriu com a boca da
minha mulher. A cadeira chia, disse ele. A cadeira não estava a chiar.
O sapo pôs a trança da minha mulher sobre o ombro. A trança era tão
comprida como a camisa. Eu disse: o teu cabelo cresceu. O sapo er-
gueu a cabeça e gritou: Tu estás bêbado, não tarda que caias da ca-
deira abaixo."
Uma nuvem mancha a lua de vermelho. Windisch encosta-se à parede
da azenha. "O ser humano é estúpido", diz o guarda-nocturno, "e
está sempre pronto a perdoar." O cão come um pedaço do coirato. "A
ela, perdoei tudo", diz o guarda-nocturno. "Perdoei-lhe o padeiro.
Perdoei-lhe o comportamento na cidade." Passa as pontas dos dedos
pela lâmina da faca: "A aldeia em peso fez pouco de mim." Windisch
suspira. "Eu nem conseguia olhá-la nos olhos", diz o guarda-nocturno:
"Só uma coisa não consegui perdoar-lhe: é que tivesse morrido tão
depressa como se não tivesse ninguém. Isso é que não lhe perdoei."
"Sabe Deus" diz Windisch, "para que é que elas existem, as mulheres."
O guarda-nocturno encolhe os ombros: "Para nós é que não" diz ele.
"Nem para mim, nem para ti. Não sei para quem." O guarda-nocturno
faz uma festa ao cão. "E as filhas", diz Windisch, "sabe Deus, também
elas se tornam mulheres."


(excerto de "O homem é um grande faisão sobre a terra" de Herta Müller)

1 Comentários:

Blogger MOLOI LORASAI disse...

David Walls,nasceu em 17 de Dezembro de 1964,na Inglaterra. É guitarrista,vocalista e compositor da banda The Wildhearts. Tem trabalhos solos paralelos ao The Wildhearts.

17 outubro, 2009 21:49  

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