05 abril, 2009

momentos*


"Gosto de me segurar ao sorriso de um longo amigo, que há muitos 
anos me contou – assegurou - que existem poemas para todos os 
momentos da nossa vida. Lembro-me muito bem desse dia, das 
cores, dos cheiros, da luz. Da luz sobre o Tejo. Lisboa. Lembro-me 
que senti nas palavras dele a certeza de muitas partidas, de muitas 
viagens dentro e fora da pele, de muitas buscas pelos poemas que 
iriam – e estão – a escrever a minha vida.

Partindo, encontrando-me, aos poucos, fui parar a muita gente. 
Especial. Muito especial. Pelo caminho, recente, os sorrisos do 
Daniel e da Teresa entraram na minha caixinha de surpresas. Em 
Cuba, aprendi um bocadinho do Brasil. Brincámos com as palavras 
seguradas no ritmo das ancas, com o samba que a Teresa jurava 
saber e que o Daniel garantia que não... As conversas! Tantas… entre 
o meu pequeno-almoço e o café da manhã nas gargalhadas dos meus 
amigos brasileiros, entre as nossas históricas diferenças e semelhan-
ças, o riso feliz de quem se deixa ir pelos dias. E entre as palavras e o 
calor que se tatuava na pele, também Hilda. De mansinho, sem se 
impor, umas quantas histórias, os cães da Casa do Sol. Pouco mais. 
A promessa imensa de ler e ficar a conhecer. A Fundação, o sentido 
para as coisas, o traço forte, o vermelho da vida…

No regresso a Portugal, a euforia de criar. Num atropelo de vontades, 
compartilho com o Luís (que há-de voltar a entrar e a fazer música 
nesta história). Dou-me em frases, afirmo-lhe ao mesmo tempo que 
lhe pergunto e lhe peço «vamos fazer isto, vamos fazer aquilo!». 
Recebo o portal da Hilda Hilst e um sorriso quente do outro lado do 
oceano. Leio, cheia de gula, para ter a certeza que os sentimentos são 
universais. Escolho um. É imediato. 
«Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.»

Delicio-me nas entrelinhas. Ofereço-o como papel de embrulho para 
um presente que nunca chegaria – nem chegará - a fazer parte do 
meu tempo real. Mas outros chegaram. Um, foi feito de tantos 
amigos, que choro de carinho por dentro de uma noite feliz.
Do Brasil, o Daniel e a Teresa enviaram-me uma carta e um poema 
de Hilda «para festejar seu aniversário, Eduarda».

« (…) Por que não tentas esse poço de dentro
O incomensurável, um passeio veemente pela vida?
Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada de ter teu rosto 
verdadeiro, desejarias nada.»

E tanta coisa por dizer. Tanta coisa a sentir.

E tantos momentos a serem selados com poesia. Hilda faz parte. 
Entre as páginas de um livro, dois poemas entregues em mão, em 
mãos frias. «Se te pareço imperfeita e nocturna, olha-me de novo. 
Porque esta noite, olhei-me a mim, como se tu me olhasses, e era 
como se a água, desejasse sair de sua casa que é o rio, e deslizando
apenas, nem tocar a margem». É dos que mais gosto. Já o sabia por 
dentro, mesmo antes de lhe conhecer as palavras.

Gosto do silêncio que fica depois dele.

Fico até ao fim, mas já não estou ali.

Reajusto as vontades.

Desaperto-me do abraço que já não era.


Sorrio porque gosto muito de ver os flocos de neve a caírem sobre 
a serra e porque há qualquer coisa de agreste no Inverno que me faz 
sentir quente. Não há razões para não me vestir de letras. Cá dentro, 
escrevo-me. Lembro-me o meu Amigo. «Há sempre um poema para 
todos os momentos da nossa vida».
Pois há.



Eduarda Freitas
Vila Real, Janeiro de 2009. Portugal."

*Um texto da minha amiga Eduarda que dá corpo e alma a um
grupo português de música erudita que está a trabalhar num 
projecto dedicado ao universo poético da brasileira Hilda Hist.

3 Comentários:

Anonymous moloi cid barretto disse...

os leitores cultos gostam da cultura (como entidade abstrata) ou de sexo. vivenciar outras realidades não é como eles.

05 abril, 2009 14:35  
Anonymous informador dicotómico disse...

Memória, silêncio, tempo, paisagem, corpo

Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.

Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.
(…)

Nas incertas noites da infância, eu sonhava com comboios; eram sonhos terríveis, que me levavam para sempre para longe de casa. Acordava sobressaltado, acendia a luz, sentava-me na cama e ficava assim até de manhã, com medo de adormecer de novo. Talvez (alguns desses pesadelos infantis ainda hoje vagamente me inquietam), eu temesse crescer, partir. Ou talvez, como dizia minha filha Ana em pequena, desejasse desnascer. A verdade é que a minha vida, como as vidas todas, se foi depois fazendo e desfazendo de inumeráveis partidas. E, aos poucos, descobri que ela, a vida, é um longo e melancólico regresso. E que, como diz o taoista, “os seres diversos do mundo / retornam à raiz”, ao encontro da unidade e da quietude.

Falamos sempre de nós mesmos (de que mais poderíamos falar?), olhamos em volta e vemo-nos a nós. Estou diante destas obras de Joana Rêgo e subitamente reconheço, entre a secreta folhagem, a casa, o lugar da partida e o lugar da chegada, do começo e do fim. Outros verão coisas menos óbvias, o gráfico e o pictórico, a controvérsia entre expressão e impressão, eu vejo a casa, o seu desenho (Fernando Guimarães) e a ocupação do espaço (António Ramos Rosa). O avião é tão friamente inquietante quanto o longínquo comboio infantil, mas o barquinho de papel é uma espécie de berço matricial que, como a casa, agora eu mesmo construo.

A casa, mais do que o lugar da infância (pois a infância é um acontecimento improvável, uma região submersa), é antes o lugar da memória. Mas também a memória é construção, paisagem construída (há uma discreta ironia nas instruções de construção com que Joana Rêgo acompanha o seu do it yourself e no modo como se articulam narrativamente, em termos no entanto mais combinatórios que sintácticos, os elementos dos quadros e os próprios quadros entre si). Não surpreende, pois, que memória e espaço coincidam aqui como lugares de possibilidade e de realização. Como na memória, no espaço do quadro inscrevem-se indistintamente princípio e manifestação, matéria e forma. Mas o curso da memória é inverso do quadro, é o da reintegração da manifestação no seu princípio. O quadro é escrita, produz sentido, ordem; é na memória do espectador (se ele for ainda capaz de inocência) que tem lugar a obra ao negro, a dissolução da casa no princípio da casa.

Porque também a interpretação é um regresso, o caminho hesitante (e a maior parte das vezes, helas!, irrelevante) de uma aparência a outra aparência. Quem estranhará então que a interpretação se confunda com a matéria-prima (memória, silêncio, tempo, paisagem, corpo) do intérprete?

Manuel António Pina
4/9/04

06 abril, 2009 11:07  
Blogger ~pi disse...

li o que está no blog e li este comentário acima

sobre a descontrução-construção de si, os múltiplos regresso, sobre essa inocência em ramos rosa,

hilda hilst, sim, algures, pelo meio das letras onde dança com música, sem que,


não será só isto mas também há-de ser por aí - o k vi,



~

08 abril, 2009 10:48  

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