27 abril, 2006

teu nome, mãe

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teu nome hoje tão raro,
palavra de três sílabas certas e belas,
nome de lendária cidade
onde as caravanas demandavam na milenar rota da seda,
nos mil segredos do oriente.
cidade plantada em chão pedregoso,
entre o Mediterrâneo e o Eufrates,
terra da mítica Zenóbia que enfrentou Roma,
a célebre cleópatra da Síria, rainha esplendorosa do deserto.

tu que não viste nada, nem nada pudeste saber disto,
tu que não passaste além das praias de Vigo,
tu que também deves ter tido, ainda que efémeros,
os teus sonhos com as terras prometidas da emigração,
as franças e as alemanhas da tua desesperada geração.
tu a quem muitas ambições cercearam,
tu que não foste rainha de coisa alguma.

tu, linda minhota,
descalça e rota por ribeiros e montados,
entregando o pão que o diabo amassou,
pelas serras frias do Barroso.
o pão que tu mesmo não tinhas para comer,
flor sem sonhos
no silêncio uivado dos perdidos montes.

tu, fruto de um crime.
filha de pai anónimo.
filha de um qualquer fidalgote de província,
como um desses saídos das novelas de Camilo.
filha de um silêncio condenado.
o que no sangue será ilegítimo?

sozinha criança que cresceste sem infância,
que depressa te fizeste mulher, em duras penas.
tu que aos treze anos já servias senhores ingleses
na longínqua Lisboa.
como um pecado capital.
não, nada na tua vida foi um oásis,
teu malfadado destino não fez sequer jus à glória
remota de teu nome.

não te souberam amar.
não te soube amar, também eu.
e perdoa se não é justo dizer isto em voz alta.

lembro o teu olhar indecifrável, quase frio,
o teu olhar suave mas distante,
numa candura sem culpa.
os olhos vivos numa revolta conformada,
as palavras de amansada amargura.

não, também eu não te soube dar ternura,
também eu não te soube inventar o amor.
nunca soube entender meu próprio e estranho sangue,
minha estouvada sorte.

não me chores.
não chores quem mal te soube chorar.
também farei por não chorar.
o meu olhar nasceu do teu, apenas isso eu sei.
o teu olhar, esse, continua talvez agora no meu,
porventura é coisa que não chegarei a saber.

tu, mãe, a quem escrevo,
neste dia em que nasceste sem o favor dos anjos,
estas palavras marejadas de lágrimas,
em vez das flores no pobre cemitério,
lugar simbólico da tua partida.

e um dia futuro, por ti,
se algum bom deus quiser,
estarei sentado a tomar um chá,
à sombra das ruínas ilustres da Gran Columnata,
na luz cor de açafrão do fim de tarde,
e então, pacificado, recordarei
teu rosto jovem
num céu prodigioso de palmeiras.

8 Comentários:

Blogger isabel mendes ferreira disse...

então fico-me.pela extrema beleza de um texto que me toca. tocante.


___________________________________


beijo. boa tarde.

isa.

27 abril, 2006 15:07  
Blogger francisco carvalho disse...

obridado, isa.
obrigado sempre pelas suas palavras.

27 abril, 2006 15:22  
Blogger H em Stª Apolónia disse...

muito,muito bonito.

27 abril, 2006 16:16  
Blogger MOLOI LORASAI disse...

REMEMBRANCE
p/Arnaldo Antunes, Milton Gaspar e Francisco Carvalho

memória franzina
da inteira criança
que tu fostes

quebra da simetria universal,
a queda de um anjo,
Crescestes.

Café Vanzeleres, Porto, 27/4/2006

27 abril, 2006 16:50  
Blogger Nuno Vieira disse...

muito comovente. Lindas palavras que se lêem sentidas.

27 abril, 2006 21:33  
Blogger isabel mendes ferreira disse...

um beijo. um beijo de boa noite.

27 abril, 2006 23:02  
Blogger David (em Coimbra B) disse...

Assim se faz um filho... bonito!

28 abril, 2006 00:20  
Blogger Mónica (em Campanhã) disse...

deve valer toda a vida, um dia ler um filho assim

29 abril, 2006 15:07  

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