para lá da moldura da janela
© Dezembro, 2003
Onde antes havia sublimações há agora evasões...
" O ouriço espinhoso secou, no alto do velho castanheiro manso
cuja copa se escondia para lá da moldura da janela, e a castanha,
brilhante e madura, rompeu a cápsula que a envolvia. Embateu
num galho próximo, mudou ligeiramente de trajectória, arrepiou
algumas folhas longas e dentadas, já amarelecidas, e, desampara-
da, embateu, segundos depois, junto ao caule lenhoso, na manta
morta que lhe amorteceu o impacto.
Os raios de luz, enfraquecidos por uma inclinação que se acen-
tuara nos últimos dias, dispersavam a sua já débil energia, inca-
pazes de conservar morno o entardecer. Um chuvisco juntou-se
ao quadro e as suas gotas, miúdas e espaçadas, depressa despon-
taram o odor inebriante a terra húmida que se misturou com o
perfume adocicado da marmelada ao lume.
Distinguiu um arrulhado, ao longe, sobre o som balsâmico dos
pingos a desfazerem-se no tapete alaranjado de folhas caducas.
Seria uma rola atrasada para a sua grande cruzada migratória ou
talvez uma daquelas que já se escusavam a partir para terras
pouco mais quentes. Quando a passagem da colher de pau pelo
doce viscoso deixou um sulco perfeito que denunciou o fundo da
panela, desligou o aquecimento e desviou o olhar na direcção da
janela, demorando-o nos galhos retorcidos e desarmados, numa
ausência vaga que, antes de ser processada, foi interrompida pelo
ranger de molas que chegava do primeiro andar. Aproximou-se
das escadas e falou para cima:
- Deixei-te um colete de malha em cima da cadeira do quarto.
Veste-o. Enquanto dormias, arrefeceu bastante. (...)"
texto de Bárbara Vale-Frias
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