Doze *
* Um de entre os cem pequenos grandes romances que dão cor-
po a "Centúria", uma obra ambiciosa do milanês Giorgio Manga-
nelli, de um humor a parecer quase absurdo, de uma ironia
clínica mas subtil. Um livro sugerido - se não me trai a memória
de uns bons quinze anos passados! - pelo meu amigo Pedro
Serrazina, livro esse que li com tal comprazimento e do qual
guardo, ainda, os gratos dias de leitura que resolvi voltar a ele
para deixar aqui, uma vez por outra, um dos seus tais cem ro-
mances, pequenos só no formato.
" Um senhor jovem e de aspecto mediamente culto, frequentador
de cinema e amante de chinesices, espera, na esquina de duas
ruas pouco frequentadas, uma mulher que julga fascinante, genial,
de delicada beleza. É o seu primeiro encontro, e ele saboreia a
humidade do ar - é fim de tarde - e compraz-se com os raros
passantes, ornamento dos seus solitários pensamentos. O senhor
jovem chegou cedo, nada o humilharia mais que a ideia de
fazer esperar aquela mulher. Sempre que encontra essa mulher,
que nunca viu a não ser na companhia de estranhos, ele experi-
menta um sentimento misto, que evita à justa o desejo e inclui à
viva força a veneração, o respeito, a esperança de fazer por ela
algo de agradável. Há muito que não experimentava por uma
mulher uma mescla tão rica e feliz de sentimentos. Descobre-se
levemente orgulhoso de si, e percorre-o um arrepio de vaidade.
Naquele momento, quando se apercebe de que está envolvido
por sentimentos a que renunciara, e que não aprecia, dá-se conta
do que está a fazer. Dirigiu-se a um encontro marcado. Nada o
prova, mas este poderia ser o primeiro de uma longa série de en-
contros. Enquanto um leve suor de angústia e de esperança lhe
aflora a fronte, pensa que a esquina daquelas ruas poderia dar
início a uma "história", um inesgotável repositório de recordações.
Algo lhe diz, bruscamente: "Aqui começa o teu casamento". O
passo rápido de uma mulher fá-lo estremecer. "Começa agora?".
Faltam poucos minutos, e algo nos astros, nos céus de estrelas
fixas, na contabilidade dos anjos, no querer dos deuses, na ma-
temática da genética começará a rodar. Ela apoiará a mão no
seu braço e iniciará um percurso que não terá fim. Uma casa va-
zia os espera, felicidade óbvia, lento murchar, crescimento de
filhos, primeiro lento, precipitado depois. Naquele momento, o
seu rosto torna-se manhoso, mau; lembrou-se de que é um covar-
de. Deseja, ao mesmo tempo, salvação e perdição, e ignora qual
seja uma e outra. É um incendiário, e tem sono. A tarde tornou-se
noite, a mulher fascinante não veio. Insulta-a em voz baixa, e quan-
do uma rapariga tímida lhe pede uma informação, finge conside-
rá-la uma prostituta que se enganou no cliente."
po a "Centúria", uma obra ambiciosa do milanês Giorgio Manga-
nelli, de um humor a parecer quase absurdo, de uma ironia
clínica mas subtil. Um livro sugerido - se não me trai a memória
de uns bons quinze anos passados! - pelo meu amigo Pedro
Serrazina, livro esse que li com tal comprazimento e do qual
guardo, ainda, os gratos dias de leitura que resolvi voltar a ele
para deixar aqui, uma vez por outra, um dos seus tais cem ro-
mances, pequenos só no formato.
" Um senhor jovem e de aspecto mediamente culto, frequentador
de cinema e amante de chinesices, espera, na esquina de duas
ruas pouco frequentadas, uma mulher que julga fascinante, genial,
de delicada beleza. É o seu primeiro encontro, e ele saboreia a
humidade do ar - é fim de tarde - e compraz-se com os raros
passantes, ornamento dos seus solitários pensamentos. O senhor
jovem chegou cedo, nada o humilharia mais que a ideia de
fazer esperar aquela mulher. Sempre que encontra essa mulher,
que nunca viu a não ser na companhia de estranhos, ele experi-
menta um sentimento misto, que evita à justa o desejo e inclui à
viva força a veneração, o respeito, a esperança de fazer por ela
algo de agradável. Há muito que não experimentava por uma
mulher uma mescla tão rica e feliz de sentimentos. Descobre-se
levemente orgulhoso de si, e percorre-o um arrepio de vaidade.
Naquele momento, quando se apercebe de que está envolvido
por sentimentos a que renunciara, e que não aprecia, dá-se conta
do que está a fazer. Dirigiu-se a um encontro marcado. Nada o
prova, mas este poderia ser o primeiro de uma longa série de en-
contros. Enquanto um leve suor de angústia e de esperança lhe
aflora a fronte, pensa que a esquina daquelas ruas poderia dar
início a uma "história", um inesgotável repositório de recordações.
Algo lhe diz, bruscamente: "Aqui começa o teu casamento". O
passo rápido de uma mulher fá-lo estremecer. "Começa agora?".
Faltam poucos minutos, e algo nos astros, nos céus de estrelas
fixas, na contabilidade dos anjos, no querer dos deuses, na ma-
temática da genética começará a rodar. Ela apoiará a mão no
seu braço e iniciará um percurso que não terá fim. Uma casa va-
zia os espera, felicidade óbvia, lento murchar, crescimento de
filhos, primeiro lento, precipitado depois. Naquele momento, o
seu rosto torna-se manhoso, mau; lembrou-se de que é um covar-
de. Deseja, ao mesmo tempo, salvação e perdição, e ignora qual
seja uma e outra. É um incendiário, e tem sono. A tarde tornou-se
noite, a mulher fascinante não veio. Insulta-a em voz baixa, e quan-
do uma rapariga tímida lhe pede uma informação, finge conside-
rá-la uma prostituta que se enganou no cliente."
6 Comentários:
Obrigada por partilhares
Não tem de quê, querida Patrícia!
;)
Lembram-se do texto "Patrícia", do Marmelo?
o fascínio da leitura ou o fascinante segredo das interpretaçoes....:)
bom gosto. beijo.
Continuaria a ler com encantamento.
muito bom...
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