27 abril, 2008

e as flores ficaram sem sentido

Domingo bonito de sol. Dia sempre custoso de trabalho. Dia
também do aniversário da minha mãe. Após o almoço, resolvo
passar pelo cemitério. Há muito que estou sem lá ir. Como as
lojas das floristas estão fechadas, a única solução é comprar um
ramo simples no Pingo Doce, ali não muito distante. Trago um
arranjo muito simples, de flores várias, por mim desconhecidas,
em tons violáceos. Saio do supermercado e dirijo-me a pé para
o cemitério. Apesar da brisa fresca, está um dia de calor. Podia
ser Verão. Não vejo muitas pessoas, o lugar, aliás, está relativa-
mente deserto. Penso que toda a gente deve estar a gozar o
domingo junto do mar. E penso que as minhas miúdas não têm
muita sorte com o pai que lhes caiu em rifa.
Nisto, segundos depois, já a chegar perto do portão do cemitério,
logo reparo que está fechado. Custa-me a acreditar que possa
ser verdade. Eu que imaginava que muitas viúvas e tantos so-
litários, por esse país fora, tinham por hábito domingueiro ficar
a velar e mesmo a falar com os seus mortos. Ligo ao meu pai
(ele também no seu passeio dos tristes ao pé do mar, ou prova-
velmente sentado dentro carro, a olhar pastosamente para
ontem, esperando ansioso a hora do jogo do seu Porto) que me
confirma que, aos domingos e dias feriados, os cemitérios não
abrem as portas pela tarde. Conformado, rio-me da situação.
Eu, o menino ateu e laico, que aos dez anos de idade, depois
de quatro anos infindáveis de catequese e comunhões inti-
midantes, passou do lado esquerdo da rua para o lado direito
da mesma rua, que trocou para sempre o silêncio assustador
da igreja e as orações de frases tão irreais, pelo ruído dos pitões
de borracha sobre a terra saibrosa, as alegres perseguições
atrás de uma bola de mau couro, a chutar alegremente todos
os sonhos da infância, assim o mundo parecia avançar mais
feliz e eu com ele...
Eu, ranhosa ovelha do católico rebanho, acabei então a dar
com o nariz na porta de um cemitério, por ignorância. E vim-
-me embora a cogitar que, curiosamente, nem os cemitérios
podem combater os grandes templos de consumo...

6 Comentários:

Blogger un dress disse...

estranho é que as almas

tenham horários...

e que

se obriguem ao ritmo dos

´vivos`...



~

28 abril, 2008 13:53  
Blogger un dress disse...

mas não creio que as flores

não tivessem encontrado

um sentido - em si mesmas...? :)

28 abril, 2008 13:55  
Anonymous Anónimo disse...

o sentido das flores é contrário ao dos ponteiros do relógio, caro francisco. um grande beijinho *

28 abril, 2008 15:55  
Blogger MOLOI LORASAI disse...

estas mulheres são danadas para ensinamentos!

28 abril, 2008 16:22  
Blogger Isabela Figueiredo disse...

Francisco, tens lá uma correntezinha. Tinha de passar a alguém, e pensei que tu tens espírito de sacrifício...
:)

28 abril, 2008 21:30  
Blogger francisco carvalho disse...

Ai, Isabela, que és danada para a brincadeira!
;)

Mas olha que o meu espírito de sacrifício não anda lá muito em alta. Na verdade, também não aprecio muito estas blogosféricas correntes. Nem é assim que gosto de dizer de mim.
Ainda por cima, era bem mais fácil falar das coisas com que me importo.
Vamos a ver, amiga, não prometo nada. De qualquer forma, foi um prazer - não o nego - ser acorrentado por ti.
;)

30 abril, 2008 01:52  

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