18 agosto, 2006

ser um pobre diabo

"(...) «Irmão, por favor, não estejas sempre a interromper-
-me. O teu riso jovem e tolo asfixia as ideias. Escuta! Presta

bem atenção. O que te digo pode um dia vir a ser útil. Acima
de tudo: não tentes ir contra a corrente. Ir contra a corrente,
irmão, isso não existe, porque talvez não haja nada no
mundo por que valha a pena lutar. E, porém, tens de lutar
sempre, apaixonadamente até. Mas para que não te tornes
demasiado ávido: lembra-te bem: não há nada por que valha
a pena lutar. Tudo está apodrecido. Compreendes isto? Bem
vês, tenho a esperança de que não consigas perceber o que
te digo. Preocupas-me.» - Eu disse: « Infelizmente sou de-
masiado inteligente para não compreender o que me dizes,
como esperas. Mas não te preocupes. As tuas revelações não
me assustam.» - Sorrimos um para o outro. Depois pedimos
outra bebida, e Johann, que aliás parecia muito elegante,
continuou a falar: «É claro que existe aquilo a que chamam
progresso, mas esta é apenas uma das muitas mentiras que
os homens de negócios espalham para poderem extorquir
dinheiro às massas com ainda mais insolência e impiedade.
As massas são os escravos do nosso tempo, e o indivíduo é o
escravo da vasta ideia que subordina as massas. Já não há
nada de belo, de excelente. Tens de ser tu a sonhar o que é
belo e bom e honesto. Diz-me, sabes o que é sonhar?» - Eu
limitei-me a dizer que sim duas vezes com a cabeça, e deixei
que ele continuasse, escutando-o com toda a atenção:
«Tenta arranjar muito, muito dinheiro, o mais depressa
possível. Tudo está estragado, mas o dinheiro ainda não.
Tudo, tudo está apodrecido, dividido, roubado da glória e do
esplendor. As nossas cidades desaparecem irresistivelmente
da face da Terra. O espaço onde antes estavam casas e palá-
cios é agora ocupado por monstruosidades. O piano, querido
irmão, o retinir daqueles sons! Os concertos e o teatro de-
caem, atingem um nível cada vez mais baixo. Sobrevive
ainda uma sociedade que dá o tom, mas mesmo esta perdeu
o poder de dar um tom de dignidade e espírito. Há livros... em
suma, nunca percas o alento. Continua pobre e desprezado,
querido amigo. O mais belo, o maior triunfo é ser um pobre
diabo. Os ricos, Jakob, vivem muito descontentes e infelizes.
As pessoas ricas dos nossos tempos: já não têm nada. São
eles na verdade quem passa fome.» (...)"

Robert Walser, "Jakob von Guten, um diário"

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© 2006

Perdoem, tão extensa transcrição mas não fui capaz de resistir
a tão impressionantes palavras, a trazer para aqui este livro que
por estes dias estou a ler, e que me vai desconcertando o verão...
Tão actual este romance! Tão absurdamente sábio! Tão pres-
ciente.
Só de imaginar que foi escrito no início do século passado,
corria o ano de 1909 em Berlim... é como um delírio saber que
estão quase a cumprir-se 100 anos, portanto!

7 Comentários:

Blogger firmina12 disse...

pois, está bem, mas também há aqui alguma vaidade nos sapatos

18 agosto, 2006 11:43  
Blogger isabel mendes ferreira disse...

a sabedoria é sempre presciente....:)


___________________beijo.

18 agosto, 2006 12:48  
Blogger francisco carvalho disse...

são apenas os pobres sapatos de um pobre diabo...
;)

18 agosto, 2006 16:33  
Blogger MOLOI LORASAI disse...

E eu que julgava que fulano era Robert Walker, o homem que anda...

18 agosto, 2006 19:24  
Blogger isabel mendes ferreira disse...

...bom voltar a vê.lo....






beijo.

19 agosto, 2006 04:07  
Blogger Carla de Elsinore disse...

foi uma das minhas leituras de verão.

21 agosto, 2006 16:13  
Blogger c disse...

foste apanhado!

04 setembro, 2006 10:59  

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