20 agosto, 2005

Vermelho ( agora que a bola começa...)

Março 2004. Início da noite. Interior de apartamento. Cidade
do Porto. Na sala de estar reinava um televisor. Imagens em
directo da Noruega. Não eram sobre novas tecnologias, nem
sobre o eterno bacalhau, nem sequer sobre as virtudes de um
dos mais prósperos e exemplares países do mundo. Apenas
futebol. Como em outros milhões de lares - e ao contrário do
que era costume naquela família - via-se a TVI, canal outrora
católico, hoje em tudo hiperbólico...
Frente à televisão, o pai, roído de nervos. O Benfica estava já
a perder por dois-zero, ainda nos primeiros minutos de jogo.
A filha, cinco anitos, debicando uma maçã, ensaiava imaginá-
rios passos baléticos pelo meio da sala, mal deixando ver os
voos do Moreira ou adivinhar os mergulhos do Nuno Gomes.
De súbito, o pai irrompe aos saltos, algo tresloucado, feste-
jando o golo benfiquista. A pequenota quase se assustou.
- Ó pai, o Benfica não presta! O Porto é que ganha sempre!
- O Benfica é o melhor clube de todos. Mesmo a perder é
sempre o maior... - respinga sem grande empenho, o pai.
- Não é nada! O Porto é que é! O estádio do Dragão é que é o
mais bonito! Eu sou dragona!!
- Ai que coisa horrível, filha! Seres do Benfica é que te ficava
bem. Já viste: BEN-FI-CA, que bem que me fica! Dragona não
é coisa que se diga.
- Mas tu não és de Lisboa! És do Porto e eu também sou.
- Pois é filhota, tens razão. Eu até tenho muito orgulho em ter
nascido mesmo no coraçaõ do Porto, nas Fontainhas, mas o
Benfica não é nenhum clube de bairro, apesar do nome, nem de
cidade, mas sim o clube de Portugal.
- O Figo é que é o melhor de Portugal! Não é nada o Benfica!
- E os dragões até assustam as criancinhas...e as princesas...- diz
o papá armado em idiota.
- Não é nada! A Rapunzel até tem um dragão que é muito amigo
dela! Ai, como é que se chama...é a Pen...
- P-É-N-A-L-T-I!!! - interrompe bruscamente o pai, num
júbilo quase demencial.
- Não é nada pénalti, é Penélope. É uma dragona muito linda...
- Olha! Afinal, aquele gajo atirou-se pró chão em vez de atirar
prá baliza! Sai-me da frente, não me estás a deixar ver o jogo.
Entretanto, a mãe, gravidíssima (outra "andrade" a caminho?),
entra na sala. E logo se intromete.
- O quê, o Benfica está a perder?! Eu tinha vergonha...
- Ó mãe, e o pai está sempre a dizer que o Benfica é o melhor,
pois não é, mãe?
- Queixinhas... - balbucia o pai, qual pura criança.
Volta o tom desdenhoso da mãe.
- Não sei porque ainda perdes tempo a ver esses desgraçados.
Não ganham um jogo.
- Estão a perder, mas na Luz ganharam um-a-zero.
- E depois? Ao menos, o Porto ganha sempre, até aos vaidosos
do Manchester...
- Este jogo é a duas mãos, portanto se o resultado ficar assim
como está agora, o Benfica passa.
- Mentiroso! Não é nada assim, pai! O futebol joga-se com os
pés, não é nada com as mãos...
Com essa tirada estava ganha a noite. Até a sufocante segunda
parte do jogo, custou menos a passar.
Qualquer dia tenho de lhe dar um dragãozinho.
Vermelho.

3 Comentários:

Blogger Carla de Elsinore disse...

esepro bem que entretanto já lhe tenhas dado um, até porque não qualquer relato histórico que fale de dragões azuis e já vermelhos....bom...

21 agosto, 2005 05:25  
Blogger Nuno Vieira disse...

pelo que sei isso é uma coisa de gerações, por isso descansa que os teus futuros netos também vão ver dragões vermelhos...

25 agosto, 2005 23:41  
Blogger francisco carvalho disse...

De dragões (con)vencidos est(ar)á o mundo cheio...
Onde há antas já não floresce a luz.
:)

27 agosto, 2005 11:22  

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