eeCONFESSO QUE SOBREVIVI Antes de ontem, à hora do Ângelus, quando um esplêndido crepúsculo outonal matizava o azul-turquesa do mar da Saquarema, eu, diante de uma judia e de um ex-padre, fiz minha confissão, talvez final: sou sobrevivente de um campo de concentração, que, nos anos 50 e 60, atendia pelo nome de "seminário", metáfora para significar "sementeira", lugar onde se cultivam mentes sãs. Durante 10 anos de minha vida, que incluíram a infância, a adolescência e o desabrochar da juventude, quis ser padre, ser um padre santo, ser santo, envergando uma sotaina preta, que, hoje, relembro como mortalha; então, entendo por que gosto, depois de minha libertação, ou, como se dizia, com desdém, à época, de ser "defroqué", de envergar todas as cores do arco-íris: no dia de minha intempestiva confissão, por exemplo, eu portava uma calça amarela, com imagens rupestres, comprada em Cabo Verde, contrastando com um casaco vermelho e um "arafat" roxo; nada, portanto, mais paradoxal com referência ao rigor do hábito que carreguei em Mariana-MG. Criança, adolescente, vivi terríveis momentos de angústia, como um Hamlet mineiro: Pequei? Não pequei? Se pequei, seria pecado mortal ou venial? Tinha pesadelos à hora da comunhão, na missa de todas as manhãs. Naqueles seminários - o menor e o maior -, eu era uma flor de estufa (rima para o meu prenome), eu era incensado, admirado e, conseqüentemente, olhado de banda por colegas, tanto é que fui estudar em Roma, na mais antiga e importante universidade católica do mundo, a Pontificia Università Gregoriana, dirigida pelos arrogantes padres jesuítas, que nos diziam: "quando vocês forem bispos..."; com efeito, lá estudam os mais brilhantes seminaristas, "la crême de la crême", os futuros bispos, arcebispos e cardeais... Minha ida para Roma foi minha salvação, não no sentido religioso, mas no sentido laico, na medida em que, como disse Voltaire, "Roma veduta, fede perduta", ou, em bom vernáculo: ver Roma é perder a fé. De fato, no trajeto entre o Colegio Pio Brasiliano, onde nós nos hospedávamos, na Via Aurelia, e a Universidade Gregoriana, na Piazza della Pilota, eu começava a ver o mundo. Em Mariana, eu vivera numa bolha ("bubble", como o grave título de excelente filme israelense), protegido da visão cruel da verdadeira vida. Em Roma, rompeu-se, de vez, a bolha, descobri o mundo miserável, como Sidarta, que, saindo do palácio, teve contato com a desgraça das ruas e se tornou Buda; na capital do catolicismo, ceguei-me para ver, como Saulo em Damasco; freqüentando o Vaticano, caí do cavalo, como Nietzsche em Turin. Lá, sentia a maior solidão da minha vida: entre gênios pedantes, eu era um zé ninguém. Lá, era cada um por si e Deus contra todos. Lá, minha intransponível solidão jogou-me na multidão. Eu não tinha amigos, mas rivais em brilho intelectual. Então, comecei, pela primeira vez em minha vida, a duvidar: duvidava de mim, duvidava dos dogmas católicos, duvidava da fé. Fui ter com o diretor espiritual, um inesquecível suiço, Pe. Müller, que me disse: "Você pode ficar no seminário ou deixá-lo". Preferi tomar um trem para Paris, indo gozar de bolsa de estudo de língua e fonética francesas no Institut Catholique de Paris. Quando decidi largar Roma e a batina, não tive coragem de escrever à minha mãe, que sonhava ter um filho padre; pedi, então, a um amigo que fosse o meu amanuense, enquanto eu escrevia outra carta à minha irmã Martha, que prepararia o coração da mamãe para receber a bomba. Por um jogo do destino, a carta escrita por Bernardino chegou antes a Belo Horizonte. O arcebispo de Mariana, com que fui ter, quando regressei ao Brasil, recebeu-me friamente e com a impáfia que o caracterizava, sabedor de que eu era o primeiro seminarista marianense que abandonava, acintosamente, o luxo da Roma; já mamãe fez uma festa, como se acolhesse um filho pródigo. Hoje, já na terceira idade, não tenho traumas dos tempos em que, obedecendo a uma draconiana disciplina, eu queria ser santo; analiso meu passado de seminarista, de que tenho uma lucidez solar. Fui iconoclasta de mim mesmo. Aprendi muito naquela década: línguas, disciplina, silêncio e, sobretudo, a valorizar o afeto, que os padres, tanto lazaristas quanto jesuítas, sufocavam: a família, por exemplo, não deve existir, pois a família do padre é a Igreja, hegemônica. Minha alienação de seminarista ficou fincada nas montanhas barrocas de Mariana e no brilho hipócrita de Roma. Sou maravilhoso? Não sei. Gosto de mim, porque vou aprendendo com os erros dos outros e com os meus próprios. Introjetei a lição de Sartre: não importa o que fizeram com você, mas o que você faz com o que fizeram com você. Aprendi a não censurar, o que busco, não com sucesso total. Recentemente, meu maravilhoso amigo Juan Arias escreveu um artigo para o jornal espanhol "El Pais", de que é correspondente no Brasil, intitulado "Por que quis ser papa", onde analisa a atuação extremamente conservadora e danosa do papa atual; eu também me pergunto: por que eu quis ser santo? Em minha vida de professor, continuo atuando como se fora um sacerdote do magistério. Sim, sou sobrevivente de um campo de concentração e, filho de libanês maronita, compreendo, com simpatia e amor, os judeus. Depois de minha intempestiva confissão crepuscular, tomei um cálice de vinho do Porto, que me lembra o vinha de missa, e fui dormir; na manhã seguinte, estava eu um pouco zonzo, talvez por causa da catarse do dia anterior, na casa de Roseana Murray e Juan Arias, meus queridíssimos amigos da terceira idade e do berçário. Agora, ouço um canto gregoriano e sinto certa saudade da criança que fui e que pulsa em alguma parte de mim. Postado por Professor Latuf às 02:35 0 comentários
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eeCONFESSO QUE SOBREVIVI
Antes de ontem, à hora do Ângelus, quando um esplêndido crepúsculo outonal matizava o azul-turquesa do mar da Saquarema, eu, diante de uma judia e de um ex-padre, fiz minha confissão, talvez final: sou sobrevivente de um campo de concentração, que, nos anos 50 e 60, atendia pelo nome de "seminário", metáfora para significar "sementeira", lugar onde se cultivam mentes sãs. Durante 10 anos de minha vida, que incluíram a infância, a adolescência e o desabrochar da juventude, quis ser padre, ser um padre santo, ser santo, envergando uma sotaina preta, que, hoje, relembro como mortalha; então, entendo por que gosto, depois de minha libertação, ou, como se dizia, com desdém, à época, de ser "defroqué", de envergar todas as cores do arco-íris: no dia de minha intempestiva confissão, por exemplo, eu portava uma calça amarela, com imagens rupestres, comprada em Cabo Verde, contrastando com um casaco vermelho e um "arafat" roxo; nada, portanto, mais paradoxal com referência ao rigor do hábito que carreguei em Mariana-MG. Criança, adolescente, vivi terríveis momentos de angústia, como um Hamlet mineiro: Pequei? Não pequei? Se pequei, seria pecado mortal ou venial? Tinha pesadelos à hora da comunhão, na missa de todas as manhãs. Naqueles seminários - o menor e o maior -, eu era uma flor de estufa (rima para o meu prenome), eu era incensado, admirado e, conseqüentemente, olhado de banda por colegas, tanto é que fui estudar em Roma, na mais antiga e importante universidade católica do mundo, a Pontificia Università Gregoriana, dirigida pelos arrogantes padres jesuítas, que nos diziam: "quando vocês forem bispos..."; com efeito, lá estudam os mais brilhantes seminaristas, "la crême de la crême", os futuros bispos, arcebispos e cardeais... Minha ida para Roma foi minha salvação, não no sentido religioso, mas no sentido laico, na medida em que, como disse Voltaire, "Roma veduta, fede perduta", ou, em bom vernáculo: ver Roma é perder a fé. De fato, no trajeto entre o Colegio Pio Brasiliano, onde nós nos hospedávamos, na Via Aurelia, e a Universidade Gregoriana, na Piazza della Pilota, eu começava a ver o mundo. Em Mariana, eu vivera numa bolha ("bubble", como o grave título de excelente filme israelense), protegido da visão cruel da verdadeira vida. Em Roma, rompeu-se, de vez, a bolha, descobri o mundo miserável, como Sidarta, que, saindo do palácio, teve contato com a desgraça das ruas e se tornou Buda; na capital do catolicismo, ceguei-me para ver, como Saulo em Damasco; freqüentando o Vaticano, caí do cavalo, como Nietzsche em Turin. Lá, sentia a maior solidão da minha vida: entre gênios pedantes, eu era um zé ninguém. Lá, era cada um por si e Deus contra todos. Lá, minha intransponível solidão jogou-me na multidão. Eu não tinha amigos, mas rivais em brilho intelectual. Então, comecei, pela primeira vez em minha vida, a duvidar: duvidava de mim, duvidava dos dogmas católicos, duvidava da fé. Fui ter com o diretor espiritual, um inesquecível suiço, Pe. Müller, que me disse: "Você pode ficar no seminário ou deixá-lo". Preferi tomar um trem para Paris, indo gozar de bolsa de estudo de língua e fonética francesas no Institut Catholique de Paris. Quando decidi largar Roma e a batina, não tive coragem de escrever à minha mãe, que sonhava ter um filho padre; pedi, então, a um amigo que fosse o meu amanuense, enquanto eu escrevia outra carta à minha irmã Martha, que prepararia o coração da mamãe para receber a bomba. Por um jogo do destino, a carta escrita por Bernardino chegou antes a Belo Horizonte. O arcebispo de Mariana, com que fui ter, quando regressei ao Brasil, recebeu-me friamente e com a impáfia que o caracterizava, sabedor de que eu era o primeiro seminarista marianense que abandonava, acintosamente, o luxo da Roma; já mamãe fez uma festa, como se acolhesse um filho pródigo. Hoje, já na terceira idade, não tenho traumas dos tempos em que, obedecendo a uma draconiana disciplina, eu queria ser santo; analiso meu passado de seminarista, de que tenho uma lucidez solar. Fui iconoclasta de mim mesmo. Aprendi muito naquela década: línguas, disciplina, silêncio e, sobretudo, a valorizar o afeto, que os padres, tanto lazaristas quanto jesuítas, sufocavam: a família, por exemplo, não deve existir, pois a família do padre é a Igreja, hegemônica. Minha alienação de seminarista ficou fincada nas montanhas barrocas de Mariana e no brilho hipócrita de Roma. Sou maravilhoso? Não sei. Gosto de mim, porque vou aprendendo com os erros dos outros e com os meus próprios. Introjetei a lição de Sartre: não importa o que fizeram com você, mas o que você faz com o que fizeram com você. Aprendi a não censurar, o que busco, não com sucesso total. Recentemente, meu maravilhoso amigo Juan Arias escreveu um artigo para o jornal espanhol "El Pais", de que é correspondente no Brasil, intitulado "Por que quis ser papa", onde analisa a atuação extremamente conservadora e danosa do papa atual; eu também me pergunto: por que eu quis ser santo? Em minha vida de professor, continuo atuando como se fora um sacerdote do magistério. Sim, sou sobrevivente de um campo de concentração e, filho de libanês maronita, compreendo, com simpatia e amor, os judeus. Depois de minha intempestiva confissão crepuscular, tomei um cálice de vinho do Porto, que me lembra o vinha de missa, e fui dormir; na manhã seguinte, estava eu um pouco zonzo, talvez por causa da catarse do dia anterior, na casa de Roseana Murray e Juan Arias, meus queridíssimos amigos da terceira idade e do berçário. Agora, ouço um canto gregoriano e sinto certa saudade da criança que fui e que pulsa em alguma parte de mim.
Postado por Professor Latuf às 02:35 0 comentários
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