os mortos do inverno
de "O médico inverosímil" de Ramón Gómez de la Serna
Quando chega este inverno de Madrid que começa nos últimos
Quando chega este inverno de Madrid que começa nos últimos
dias de Setembro, há uns seres que se dão como mortos.
São homens de difícil cura. Sentem-se apanhados, prisioneiros,
São homens de difícil cura. Sentem-se apanhados, prisioneiros,
mortos. De antemão se entregam.
É muito difícil curar estes doentes que mostram um grande
É muito difícil curar estes doentes que mostram um grande
medo ao inverno iniciado. Morrem copiosamente. Dizem logo,
no primeiro dia mais fresco: Que frio vai estar este inverno! Como
o frio aperta!
Acautelam-se quanto à invernia em que hão-de morrer, mas têm
a certeza de ver em qualquer enterro o seu próprio funeral.
Quando por acaso me aconteceu ir vê-los, verifiquei que de ante-
Quando por acaso me aconteceu ir vê-los, verifiquei que de ante-
mão estavam mortos, que se faziam mortos, que esperavam a hora
com urgência.
Queriam deixar a braseira e o quarto, que até com enchumaços fica
Queriam deixar a braseira e o quarto, que até com enchumaços fica
cheio de vento e de frio. Mas impedi-los para quê?
Tinham circundado os olhos pelas coisas uma última vez, tinham-se
Tinham circundado os olhos pelas coisas uma última vez, tinham-se
despedido de todo, tinham dito adeus para sempre aos amigos.
Estes doentes do início do outono madrileno, que chamam urgente-
Estes doentes do início do outono madrileno, que chamam urgente-
mente o médico, não têm remédio nenhum, são mortos voluntários,
os que encomendam logo os primeiros caixões.
A maneira como tiveram de dar a vida no dia frio foi tão forte que já
A maneira como tiveram de dar a vida no dia frio foi tão forte que já
não podem resgatá-la.
— No fim de contas — disse eu para comigo perante estes doentes
— No fim de contas — disse eu para comigo perante estes doentes
impossíveis — é melhor a cooperação voluntária com a morte do que
a cooperação obrigatória... O homem que assim se rende à morte é
porque vai descansar, porque se despede a horas certas, disfrutando
o panorama da cidade de Madrid coberta pelas nuvens e pelos capuzes
dos guarda-chuvas.
2 Comentários:
( per-feita
-mente,
~
Sim, de facto, preferível a cooperação voluntária... com tempo para todas as despedidas...
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial