mergulho no livro
meus livros de férias, parte cinco.
© 2005
"(...) - A baronesa, vê tu, deixou aqui o romance que anda a ler.
Ficou todo molhado do chuveiro da rega... Olha para isto...
- Como é que se chama? - indaga o outro, sem excesso de
interesse, parece perguntar por perguntar.
- O Apicultor e o Bidão de Mel, raio de título. É dum desses
autores portugueses que andam para aí, nabóides a escrever.
Estive a folhear. Um atraso de vida. Perdas de tempo, deambu-
lações, opiniões, descrições, filosofias, desarrumação... um bo-
cejo, pá. Eu, cá para mim, um livro deve apressar-se para o
evento começar logo a meio da coisa e eliminar os desvios e as
imaginações que só servem para encher. Um homem com pes-
coço de cavalo, por exemplo. Sonhos de doente, estás tu a ver?
- Ai o gajo meteu um homem com pescoço de cavalo?
- Não exageremos. Isto era eu a pensar...
O coronel Lencastre também manifestará opiniões sobre roman-
ces. Depois duma parada destas, não vai ficar calado... E notar-
-se-á um ligeiro sotaque, quase imperceptível, que rebate algu-
mas vogais abertas.
- Eu acho - dirá - que o mais importante é o entrecho, a acção.
Depois vêm as personagens e o respectivo desenho moral. A
seguir o pensamento, os conceitos. Mas também a maneira como
está escrito, o português, se é bom ou mau. Há ainda a toada, o
ritmo que é importante. Finalmente, o modo como os aconteci-
mentos são postos diante dos nossos olhos, a... como hei-de
dizer? A espectacularidade da coisa.
- É pá, isso é muito bem visto...
- Sempre pensei assim. Mas eu há trinta anos que não leio um ro-
mance. O último foi dum tal Teixeira de Vasconcelos, Um Prato de
Arroz Doce, em dois volumes. Ficou esquecido no quartel, em
Angola por um alferes que veio para a metrópole com parte de
doente. Grande livro!
- Deve dizer-se logo o que tem de ser dito, e pôr os pormenores
de lado, não achas?
- Pois, para mim, os factos devem estar numa tal relação que,
suprimido ou deslocado um deles, também o conjunto se trans-
forme ou confunda. O que se pode acrescentar ou tirar sem conse-
quências não faz parte do todo. Esta é, pelo menos, a minha
modesta opinião.
- E as piscadelas de olho? Há gajos que se fartam de fazer cita-
ções encapotadas só para ver se a malta dá por isso!
- Peneiras... Charadices...
- Atiro o livro da baronesa prà piscina?
- É pá, ó Maciel, sê caridoso para com a tua mulher, pá!
- Francamente, não sei se estas leituras lhe fazem bem... (...) "
" Fantasia Para Dois Coronéis e uma Piscina ", Mário de Carvalho
© 2005
"(...) - A baronesa, vê tu, deixou aqui o romance que anda a ler.
Ficou todo molhado do chuveiro da rega... Olha para isto...
- Como é que se chama? - indaga o outro, sem excesso de
interesse, parece perguntar por perguntar.
- O Apicultor e o Bidão de Mel, raio de título. É dum desses
autores portugueses que andam para aí, nabóides a escrever.
Estive a folhear. Um atraso de vida. Perdas de tempo, deambu-
lações, opiniões, descrições, filosofias, desarrumação... um bo-
cejo, pá. Eu, cá para mim, um livro deve apressar-se para o
evento começar logo a meio da coisa e eliminar os desvios e as
imaginações que só servem para encher. Um homem com pes-
coço de cavalo, por exemplo. Sonhos de doente, estás tu a ver?
- Ai o gajo meteu um homem com pescoço de cavalo?
- Não exageremos. Isto era eu a pensar...
O coronel Lencastre também manifestará opiniões sobre roman-
ces. Depois duma parada destas, não vai ficar calado... E notar-
-se-á um ligeiro sotaque, quase imperceptível, que rebate algu-
mas vogais abertas.
- Eu acho - dirá - que o mais importante é o entrecho, a acção.
Depois vêm as personagens e o respectivo desenho moral. A
seguir o pensamento, os conceitos. Mas também a maneira como
está escrito, o português, se é bom ou mau. Há ainda a toada, o
ritmo que é importante. Finalmente, o modo como os aconteci-
mentos são postos diante dos nossos olhos, a... como hei-de
dizer? A espectacularidade da coisa.
- É pá, isso é muito bem visto...
- Sempre pensei assim. Mas eu há trinta anos que não leio um ro-
mance. O último foi dum tal Teixeira de Vasconcelos, Um Prato de
Arroz Doce, em dois volumes. Ficou esquecido no quartel, em
Angola por um alferes que veio para a metrópole com parte de
doente. Grande livro!
- Deve dizer-se logo o que tem de ser dito, e pôr os pormenores
de lado, não achas?
- Pois, para mim, os factos devem estar numa tal relação que,
suprimido ou deslocado um deles, também o conjunto se trans-
forme ou confunda. O que se pode acrescentar ou tirar sem conse-
quências não faz parte do todo. Esta é, pelo menos, a minha
modesta opinião.
- E as piscadelas de olho? Há gajos que se fartam de fazer cita-
ções encapotadas só para ver se a malta dá por isso!
- Peneiras... Charadices...
- Atiro o livro da baronesa prà piscina?
- É pá, ó Maciel, sê caridoso para com a tua mulher, pá!
- Francamente, não sei se estas leituras lhe fazem bem... (...) "
" Fantasia Para Dois Coronéis e uma Piscina ", Mário de Carvalho
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