11 novembro, 2009

a canção

"Os porcos malhados do vizinho grunhem ruidosamente.
Sãu uma vara de porcos nas nuvens. Passam por cima
do pátio. A varanda está coberta por uma teia de folhas.
Cada folha faz uma sombra.
Na travessa ao lado ouve-se cantar uma voz de homem.
A canção flutua por entre as folhas. À noite a aldeia é
muito grande, pensa Windisch, "e por todo o lado está o
seu fim.."
Windisch conhece a canção: "Uma vez fui a Berlim, a ver
a linda cidade. Olari-olará-lá-lá pela noite fora." A va-
randa fica mais alta quando está assim escuro. Quando as
folhas têm sombra. Faz força no pavimento para subir.
Sobre um pau. Quando crescer demais, então o pau par-
te-se. A varanda cai no chão. No mesmo sítio. Depois de
amanhecer já não se vê que a varanda cresceu e caíu.
Windisch sente a pancada nas pedras. À sua frente está
uma mesa vazia. Está um pavor em cima da mesa. O
pavor está nas costelas de Windisch. Windisch sente o
pavor como uma pedra no bolso do casaco.
A canção flutua por entre a macieira: "Hás-de mandar-me
a tua filha, hei-de fodê-la uma vez. Olari-olará-lá-lá
pela noite fora."
Windisch mete a mão fria no bolso do casaco. No bolso
do casaco não está pedra nenhuma. Entre os seus dedos
está a canção. Windisch acompanha em voz baixa: "Meu
senhor, isso não está certo, minha filha não é p'ra foder,
Olari-olará-lá-lá pela noite fora."
Como a vara de porcos lá em cima nas nuvens é tão
grande, as nuvens arrastam-se por cima da aldeia. Os
porcos estão calados. A canção está só na noite: "Ó mãe,
deixa-me lá, para que é o meu buraco. Olari-olará-lá-lá
pela noite fora".
O caminho de volta a casa é longo. O homem caminha na
escuridão. A canção não pára. "Ó mãe empresta-me a tua,
a minha é pequena demais. Olari-olará-lá-lá pela noite
fora." A canção é pesada. A voz é grave. Há uma pedra na
canção. Corre água fria sobre a pedra. "Não ta posso em-
prestar, amanhã teu pai precisa dela. Olari-olará-lá-lá
pela noite fora."
Windisch tira a mão do bolso do casaco. Perde a pedra.
Perde a canção.
"Amalie", pensa Windisch, "afasta as pontas dos pés ao
andar sobre a terra."


Herta Müller,
"O homem é um grande faisão sobre a terra"

3 Comentários:

Blogger António Reis disse...

um dia, quando tiver uma biblioteca, uma das prateleiras vai chamar-se Francisco ;)
Aquela abraço

12 novembro, 2009 00:44  
Blogger francisco carvalho disse...

Que curioso, devia estar a ler-te quando deixaste cá estas simpáticas palavras. Dois belos textos.
Quando legar a minha pobre biblioteca vai ter que haver mais livros teus;)
Aquele abraça

12 novembro, 2009 00:56  
Blogger António Reis disse...

lol Abraço bem visto

12 novembro, 2009 17:33  

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