31 agosto, 2007

tudo o que não mostrei

Começa a ser demasiado doloroso esta cíclica partida de
gente que nos fez gente, de pessoas que constituem a arga-
massa do que somos, de ilustres nomes que nos ensinaram,
nos formaram, nos abriram os mais bravos caminhos.
Foi por causa de Eduardo Prado Coelho, se não me engana a
minha traiçoeira memória, que fui a correr comprar "O Amante"
de Marguerite Duras. E depois desse inaugural, vieram todos
os seus outros livros. E vieram também os filmes. Paixão que vivi
intensamente. Devo-lhe essa impetuosa e quase juvenil paixão.
E devo-lhe também a secreta e inigualável Llansol. E o imortal
Musil. E, concerteza ainda, por exemplo, Pascal Guignard ou
Rui Nunes. Um sem fim de nomes e referências.
Li, como todos nós afinal, quase todas as suas crónicas no
"Público" ao longo destes anos. Também eu começava a
leitura do jornal quase sempre por ali. E ali ficava pago o jornal.
Ficava ganho o dia. E a partir disso, muitas vezes, já nem
tinha qualquer sentido ficar depois a ler sobre as comezinhas
venturas deste país ou sobre os ventos perigosos que todos
os dias parecem de forma perpétua varrer o nosso desabrigado
mundo.
Li também muitas das recensões críticas e alguns dos seus
pequenos ensaios. E li os dois primeiros volumes publicados do
seu diário. Era fascinante a abrangência dos seus conhecimentos
e o ecletismo dos seus gostos. E lembro sempre com particular
intensidade, quase cumplicidade, o seu gosto algo inesperado
pelas coisas do Brasil; algumas das suas belas evocações de amo-
rosos dias passados nas praias de Ubatuba.
Lembro-me da primeira vez que o vi ( e apenas numa ou noutra
ocasião pública o terei voltado a ver) . Estávamos a meio dos anos
oitenta. Um pequeno grupo de jovens ávidos de cinema. Num
longínquo Festival de Cinema da Figueira da Foz. Ali estava ele,
numa manhã de sol, sozinho na esplanada defronte ao Grande
Hotel, rodeado de pastas, livros e jornais . Ali estava ele, o crítico
célebre, o crítico criticado, o homem gorduchinho que gostava de
boas polémicas. Ali estava aquele a quem eu devia Duras.

Contaminado por esse amor pelas palavras e imagens durasia-
nas, realizei anos mais tarde um pequeno filme que tinha par-
cialmente como base, um texto da própria Duras sobre o seu
modo de ver e fazer cinema. Apesar de um prémio nacional, de
muitas palavras elogiosas e das mais diversas exibições públicas,
tive sempre o pequeno anseio de que EPC pudesse um dia ver o
meu filme.
Nunca ganhei coragem para lho enviar por correio, para lhe
pedir opinião. E agora, ficarei assim, a remoer a minha cobardia
(medo do ridículo? receio da presunção? a minha excessiva
previdência?), por tudo o que não mostrei. E era simplesmente
pouco.



"Gostaria de tornar bem claro como o gosto da citação
tem a ver com um amor intenso das palavras. Por vezes,
citação que excita pela convicçaõ de que alguém encontrou
um dia as palavras certas - isto é, os nomes próprios -
para dizer algo que em nós foi expressão confusa e enro-
dilhada. Aqui a citação tem um efeito de evidência. Que
é sempre, acreditem, motivo de júbilo.
Por outro lado, a citação é um incitamento. Porque reti-
rar as palavras de um contexto (a citação faz um desvio)
é criar em torno delas um halo de silêncio, um anel de
referências implícitas, que abre o espaço para dizer mais.
O espaço off de uma citação é um convite para se pensar.
A citação condensa, mas ao mesmo tempo indecide - efeito
de descontextualização.
Resta o argumento mais pessoal, quase íntimo: sempre vivi
entre palavras, através dos textos que escrevi sobre os
textos dos outros, e as citações são o material que me
habituei a trabalhar. Poderei chamar a isto efeito de
montagem?
Pequeno exercício quotidiano: ler frases desgarradas, sol-
tá-las arbitrariamente do texto. Isto é, abrir um livro
ao acaso, num sinal vermelho, antes de o filme começar,
durante os anúncios na televisão, e escolher à toa algu-
mas palavras. Sempre pensei que, numa dessas frases, che-
garia a verdade, o encontro decisivo. Uns jogam na lotaria,
outros nas palavras."

em "Tudo o que não escrevi, Diário I (1991-1992)", de
Eduardo Prado Coelho

30 agosto, 2007

"oitenta e sete"

mais um dos "cem pequenos grandes romances" , retirado
desse fabuloso livro de Giorgio Manganelli, "CENTÚRIA"


"Que aquele homem está incomodado, vê-se claramente.
Está irrequieto; caminha, pára, apoia-se num só pé, parte de
novo correndo; ei-lo parado numa esquina de rua; espreita
para a rua seguinte, hesitante; suspira e apoia-se à parede.
Na realidade, está extremamente insatisfeito com a sua vida,
mas tem ideias bastante confusas quanto às origens de tal in-
satisfação. Podia ser, pensou, o uso do tempo. O tempo não
tem regra, mas finge tê-la. Nada é mais difícil que tratar com
o tempo. Em certos dias, os segundos escorrem como que
libertos de uma clepsidra empregada como prisão; mas muitas
vezes são de desigual grossura e, ao viver, tropeça neles con-
tinuamente. Pensa que ainda lhe restam anos para viver, e
não sabe a sua duração. Maneja os botões mentais do tempo,
e eis que ele pára totalmente; de uma hora à outra passam
dez horas; os segundos são longos como uma rua, e a rua,
como é sabido, é sempre feita de quartos de hora, mas qua-
tro ruas não fazem uma hora, fazem seis dias. O sétimo é
uma praça, e atravessando-a, engana-se. Procurou adestrar o
futuro, e obrigá-lo a um ritmo menos cansativo. Comprou um
grande relógio, para ensinar o tempo ao tempo, mas o tempo
não se aprende a si mesmo. Se carrega num outro botão, o
tempo corre, escapa-se, foge. As ruas encurtam-se, e se não
trava logo, dentro de uma semana a sua vida estará acabada e
nada terá feito para justificar o seu nascimento. Seria preciso
inventar um relógio capaz de capturar o tempo e obrigá-lo a
manter aquele passo, sempre, todos os dias, toda a vida. Mas
ele seria o primeiro a escaqueirar um tal relógio. Por conse-
guinte, não pode deixar de procurar ajustamentos provisórios
e inseguros, já que o tempo não respeita os acordos, não por-
que seja desleal, mas porque é por sua vez vítima do tempo.
Na realidade, como o senhor descontente suspeita desde há
algum tempo, também o tempo está descontente consigo, mas
não consegue resolver o seu próprio mal-estar, porque não
tem nenhum modo para medir-se, a não ser ele próprio; o
resultado é inutilmente injusto, como é natural, e o tempo
nunca sabe se está a correr, a contemporizar, ou se está pa-
rado. Por isso, o tempo pede continuamente desculpa a todos,
sem querer saber se é razoável que peça desculpa."

29 agosto, 2007

duras como outono numa noite de verão

28 agosto, 2007

por essa estrada

"A estrada atravessava um atoleiro seco onde tubos de
gelo se erguiam da lama gelada como formações rochosas
numa gruta. Junto ao tapete de asfalto, os restos de uma
velha fogueira. Mais além, um longo caminho elevado de
betão. Um pântano morto. Árvores mortas a emergir da
água cinzenta, com os restos cinzentos de barba-de-velho
a penderem-lhes dos ramos. Os montículos sedosos de
cinza contra a berma. Ele parou, encostado ao parapeito
rugoso de betão. Talvez agora, com o mundo destruído,
fosse finalmente possível perceber de que é que era feito.
Oceanos, montanhas. O ponderoso contra-espectáculo
das coisas a deixarem de existir. A aridez que tudo varre,
insaciável e friamente secular. O silêncio."

em "A Estrada" de Cormac McCarthy

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27 agosto, 2007

dizer

é nas planuras de céus distantes que me cantarei
vagamundo.
é nas agruras do amor terreno que algum deus em mim
venha talvez a sorrir.
é na doçura de palavras raras que tatuarei seu corpo.

24 agosto, 2007

o verão assim sem travão



"Grandioso é o que me apresto a cantar: por que artes
consegue segurar-se o Amor, um menino tão vagabundo
na vastidão do universo; ligeiro é ele e possui um par
de asas, com que voa; bem difícil é pôr-lhes travão."

(de "A Arte de Amar" de Ovídio, tradução de
Carlos Ascenso André, Livros Cotovia)

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23 agosto, 2007

zapping (será o futuro uma ameaça?)

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22 agosto, 2007

será a estrada do futuro a mesma do passado?

" Nesta estrada não há homens criados por Deus. Desapa-
receram todos e eu fiquei e eles levaram o mundo consigo.
Pergunta: Em que é que o que nunca existirá difere do que
nunca existiu?

As trevas da Lua invisível. As noites agora somente um
pouco menos negras. De dia, o Sol banido roda em volta da
Terra como uma mãe aflita de candeia na mão.

Pessoas sentadas nos passeios ao alvorecer, parcialmente
imoladas e fumegantes nas suas roupas. Como membros de
seitas após tentativas falhadas de suicídio. Outros aproxi-
mavam-se para os ajudar. Ao fim de um ano havia foguei-
ras no cume dos montes e cânticos tresloucados. Os gritos
das pessoas assassinadas. De dia, os mortos empalados em
paus aguçados ao longo da estrada. Que mal teriam eles
feito? Parecia-lhe bem possível que, na história do mundo,
houvesse mais castigo do que crime, mas isso não lhe pro-
porcionava grande consolo. "


retirado do romance "A Estrada" de Cormac McCarthy,
um dos meus (poucos) livros de férias.

21 agosto, 2007

celeste exclamação

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"L'heure d'été", Marina Celeste

dans ma boîte, au fond de ma coquille
je m'endors, et je me recroqueville
je déambule le long de mes souvenirs
les meilleurs plus jamais les pires
par le hublot de ma mémoire trouble,
les ombres glissent et se dédoublent
je vois des bateaux qui s'éloignent des
quais
j'revois des photos jamais dans des
cahiers
et ton regard impossible à dompter
qui me défie sur du papier glacé

aujourd'hui, il fera beau
c'est c'qu'à dit la météo
mettez-vous à l'heure d'été
je remets les compteurs
à zéro et je rêve
une heure en mois, j'ai mis les
pendules à l'heure
et mon coeur sur la ligne d'arrivée
je fais peau neuve, le répondeur pour
filtrer
rira bien, qui rira l'dernier!
terminus tout le monde descend
c'est le grand ménage de printemps

je veux des croisières, des rencontres
épicées
des éclats de rire, des diapo colorées
d'autres mains pour mon corps acidulé
et des vacances por ma tête encombrée

aujourd'hui, il fera beau
c'est c'qu'a dit la météo
mettez-vous à l'heure d'été
je remets les compteurs
à zéro et je rêve
comme la mer efface
des mots le gôut, la trace
je me détache

aujourd'hui...

20 agosto, 2007

Um porto, poema de José Agostinho Baptista

Um porto é como uma seara plantada de mastros,
uma azáfama de gritos;
brancos fumos desvanecem o azul;
vou por estas horas em que se deambula de um vinho
a outro vinho, de uma boca salgada a um beijo.

Não haverá regresso, ainda que o digas.
Este oceano começa no tédio das casas.
Giram as hélices ao fundo de uma cabeça citadina -
isto é: na amarga vida das metrópoles.

O ofício das vagas, a minúcia das velas -
outro destino não queria:
empunhei o leme, recolho a âncora, bebo, escrevo -
é como o ranger de desusadas portas, um alarido de
ferros,
uma vibração de ossos há muito sentados.

Tudo acaba na sedução das cadeiras,
das páginas onde soletramos um sonho atlântico,
o ancoradouro que nos prende:

ainda que o digas não partirei -
conheço a nostalgia que vive para sempre no coração da
infância e dos barcos.

19 agosto, 2007

dali nunca será o salvador daqui

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17 agosto, 2007

brisa do passado

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É impossível, como diz a canção, dizer ao sol que abandone
o céu... E é impossível também, no mar de discos da minha
colecção, dizer qual o mais secreto dos seus tesouros...
Mas é possível, no meloso charco do meu sentir, dizer que esta
é uma das capas que mais gosto, tudo por causa da belíssima e
inspiradora fotografia de um tal Dean Nakahara...

Início dos anos setenta. Uma brisa brasileira varrera todo
o mundo. Uma espécie de felicidade tropical contagiante.
Uma música de sabores edénicos. Aqui, sublimada numa
bossa-nova de travo venezuelano. O fabuloso Aldemaro
Romero e sua "Onda Nueva", numa canção de palavras
sublimes assinada por Sammy Cahn e harmoniosos coros a
cargo do grupo vocal "Anita Kerr Singers".

Uma brisa de nostalgia a varrer este blogue. Uma espécie
de saudade de um tempo da minha infância, onde os corpos
não tinham que ser mais do que eram para serem belos.

É, na verdade, e agora canto eu, impossível dizer ao sol que
venha tomar o seu lugar neste nosso mortiço verão, mas talvez
seja possível dizer ao amor que venha, sorrateiro, animar
nossa desconsolada terra...

16 agosto, 2007

as impagáveis crónicas de Ferreira Fernandes

Um dos melhores e mais inteligentes "leitores" do nosso
quotidiano, deste mundozinho global que a todos assombra
e desassossega. Um dos escribas nacionais que mais aprecio,
que mais me diverte e que creio não estar a ser suficiente-
mente reconhecido, quer pelo público em geral, quer pelos
seus pares. Deixo-vos a crónica saída ontem no "Diário de
Notícias":
"TANTA LETRA, TANTA CAMA, É SUSPEITO"


"Duas respostas deixam-me sempre perplexo. Uma é a
esta pergunta: "Que estás a ler?" Nunca ninguém diz:
"Amor de Perdição". Ou: "Neste momento, nada."
Não. O entrevistado tem sempre à mão o livro da moda,
mais um tratado de Wittgenstein e, para rematar, está a
reler a obra poética de T.S.Elliot. A outra resposta é a
sondagem a heterossexuais: "Quantos parceiros sexuais
já teve?" Nas respostas masculinas, o número deixa-me
banzado. Mesmo contando com a equipa de basquetebol
feminino da Bielorrússia (onde estive em 1972), a minha
experiência pessoal é ridícula. Mas a comparação que mais
me intriga é que a média masculina é sempre o dobro da
feminina. O New York Times, esta semana, ouviu o pro-
fessor David Gale, da Universidade da Califórnia, que
disse: "Essa diferença é matematicamente impossível." Se
algum inquérito de Verão estiver interessado em saber o
que ando a ler, aí vai: "Um artigo do New York Times. E a
reler."

15 agosto, 2007

dança da criança (entre o espírito e a matéria)

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14 agosto, 2007

agora que é verão

porque não deixar-vos aqui este extracto, leitosamente
suculento, do livro fabuloso de Rámon Gómez de la
Serna, "SEIOS", escrito nesse dealbar já tão longínquo
do século XX...


"Os seios das banhistas no porto de mar são revelações extraor-
dinárias... É uma coisa graciosa contemplar a sinceridade e a falta
de sinceridade com que se revelam... Cobrem-nos ao andar pela
praia e, por baixo das toalhas, mostram só as pernas, de um branco
lívido, um branco que é filho da sombra em que está fechado como

que de castigo... Depois entram de frente no mar, de costas para os
espectadores, de frente para os deuses das águas, que as fitam, que
as esperam e que lhes lançam os braços que são ondas... É a altura
em que mais olhos as observam, mesmo do mar... Depois entram na

água, os seios estremecem, ficam pequeninos, contraem-se, o bico
mete-se completamente para dentro e faz uma cova em vez de uma
saliência... Depois reagem-lhe os seios sob a pressão da água viva,
sob o açoite da onda que os procura, que rebenta intencionalmente
sobre eles, que se agacha para lhes pegar, e os seios ganham a sua
dimensão maior. Oh!, que incitamento o destes seios no mar, e pelos
quais já se afogou algum rapaz por nadar furtivamente debaixo de
água até junto delas! Elas tentam ficar escondidas dentro de água ou
de frente para o alto mar, mas às vezes voltam-se e brincam na água,
nuas, completamente nuas, porque os seus fatos de banho molhados
as desnudam ao marcar-lhes com mais cor as maciezas secretas.
Agarradas à corda onde não é muito fundo, sentam-se na água e ao
baixarem as nádegas põem em destaque o cu clássico. Vêem-se vistas

por todos os olhos e sobretudo pelos binóculos aperfeiçoados, que as
apanham todas, que puxam por elas como uma contra-ressaca que as
lança para terra. Até algum capitão ao longe, o capitão do navio que
quase não se vê no horizonte, as vê com o seu binóculo de cem nós e
de cem articulações. As que brincam no mar transforma-se de repente
em artistas de circo. Com os seios gozando na água como belas estrelas
do mar, elas dão o último mergulho e depois regressam à praia, galho-
feiras, coradas, tapando os seios molhados, despegando o o pano que
ficou agarrado a eles e procurando a toalha. Depois tapam-se, mas já
no meio da praia descobrem-se para melhor se cobrirem, e é esse o

momento em que se mostram mais totalmente, com todo o tecido pegado
aos seios, ao ventre e às nádegas, tersa e túrgidas. Depois, na cabina, é a
altura em que a mulher está mais deliciadamente a sós consigo mesma, e

os seios têm uma mais intemperante realidade, têm os desejos mais verda-
deiros, a mais terrível rebeldia; é o momento em que mais desejariam voar
e transportá-la pelos ares, como se fossem dois balões com força para
isso. Há um momento radioso lá dentro das cabinas, em que vêem a radi-
osa verdade da sua verdadeira vocação. Por uma abertura que há no te-
jadilho da cabina entra toda a viva revelação que se lhes apresenta, e lhes
dá um ímpeto que elas depois acalmam."

11 agosto, 2007

comelade para navegantes deste meu perdido mar



Tenho dez discos de Pascal Comelade. Vou levá-los todos
para a tal ilha deserta que todos almejamos.

Eu que nada sei dançar, tenho um incorrigível gosto por bailes
de província, por ambientes chungosamente sublimes, por
amores falhados e noites (cl)amorosamente decadentes.
Eu que nada sei tocar, há músicos que me levam sempre à
beira das lágrimas. Comelade é um deles. Gosta do que eu gosto.
Gosto do que ele gosta. Gosto como ele gosta. A arte a brincar.
A arte de brincar. Comelade é um dos meus maiores. O grande
"pianonanista".

(acho que estou a fazer confissões a mais. não sei se devia.)

09 agosto, 2007

livros que me pertencem, III



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" Salvador - com seu Carnaval eléctrico e libertário, com suas
praias desertas e suas praias citadinas, com sua arquitetura
colonial e seus cultos afro-brasileiros - tornou-se a cidade
preferida dos desbundados. Mas o Rio tinha feiras hippies e
São Paulo bairros de roqueiros. "Todo o mundo" fumava ma-

conha e tomava ácido. Luís Carlos Maciel escrevia sobre essa
cena no Pasquim (e depois na edição brasileira da Rolling Stone),
interpretando-a de um ponto de vista que migrava do existen-
cialismo sartriano para as religiões orientais. As ruas - sobretudo
as do Rio e de Salvador - estavam cheias de rapazes cabeludos
e moças metidas em velhas camisolas rendadas. Os apresenta-
dores dos telejornais mais respeitáveis - e muitos jornalistas que
hoje exibem desprezo pelo período - ostentavam cabeleiras mui-
to mais longas do que jamais tinham tido e que jamais voltaram
a ter em toda a sua vida. O grupo Novos Baianos - que a essa
altura produzia não uma fusão mas uma sugestiva (e abrasiva)
justaposição de chorinho e rock - vivia em uma comunidade,
primeiro num amplo apartamento que eles encheram de tendas e
cabanas no Bairro de Botafogo, depois num sítio na área semi-
-rural de Jacarepaguá. Torquato, em sua coluna de jornal, pole-
mizava com o Cinema Novo, numa campanha pelo "cinema mar-
ginal", inspirado na agressividade inicial de Rogério Sganzerla e
Júlio Bressane. Mas os próprios cineastas do Cinema Novo tinham
deixado seus cabelos crescerem, queimavam fumo e tomavam
ácido. Gal era a musa desse universo. Um trecho da praia de
Ipanema que ela freqüentava - justamente onde tinha se amon-
toado areia dragada do fundo do mar para a obra de construção
de um "emissário submarino" de esgoto - ganhou o apelido de
"dunas da gal". Em Salvador os desbundados se encontravam na
praia do Porto da Barra, uma enseadinha perfeita entre dois fortes
coloniais e disposta de frente para o pôr-do-sol como um anfi-
teatro. Era a tradicional praia popular da cidade. Eu agora voltava
a freqüentá-la. Ali - como nas dunas da Gal - os rapazes não
usavam sungas de praia mas as cuecas minímas (e um tanto
transparentes) que já traziam por baixo das calças. E alguns ca-
sais homossexuais (sobretudo femininos) não se esforçavam muito
em esconder suas carícias. Mas os hippies propriamente ditos, os
antitecnológicos e antiurbanos radicais, se refugiavam na distante

praia de Arembepe. Lembro que Glauber, irritado com nossa identi-
ficação com essas turmas, disse numa entrevista (ecoando - mas
com independência - os esboços de hostilidade do Pasquim) que
odiava essa "alienação baiana" em que todos iam "atrás do trio
eléctrico a Arembepe babar dendê". O fato é que só vim a conhe-
cer Arembepe perto dos anos 80, e aí já era uma outra cena, em-
bora os remanescentes hippies continuassem a viver numa aldeia
próxima, entre lagoas cujas águas aparecem douradas nas foto-
grafias - mas eu nunca fui a essa aldeia. Zé Agrippino e Maria
Esther tinham voltado da África transfigurados em ultra-hippies e
viventes de uma "nova era" que, por causa do modo como eles se
punham nela, combinando envolvimento profundo e distanciamento
crítico, nada tinha do tom enjoativo que a expressão conota - co-
notava já - para mim.
Eu, que era visto como precursor de tudo isso - afinal deixara meu

cabelo crescer bem antes da maioria, tinha tomado auasca muito
cedo, tinha adotado o neo-rock'n'roll inglês quando toda essa gente
ainda o repudiava, tinha sido preso e exilado e voltava decepcio-
nando quem esperava rock'n'roll e política (mas reiterando a ambi-
güidade sexual notada em minha figura cênica desde antes da
partida) -, sentia-me tão deslocado (ainda que também encantado)
quanto me sentira nos festivais da ilha de Wight, de Glastonbury ou
de Bath: sentia-me instalado no tempo, mas olhava à frente, em
busca do caminho da música popular brasileira, do caminho do Brasil,
do meu caminho nisso.
Eu não era um desbundado: não tomava drogas, mantinha algum
conforto burguês para minha família com os proventos do meu
trabalho na música, amava o essencial da cultura do Ocidente.
Rogério tinha inventado um apelido para mim que me agradava:
Caretano. Os músicos que eu conhecera ao chegar ao Rio em 64
usavam drogas como um exercício de alheamento do mundo pro-
saico dos homens sensatos, e de aproximação do numinoso, do
transcendente ou da iluminação - e, naturalmente, da "musi-
calidade". Ser ou estar "louco" era considerado um privilé-
gio. As pessoas que nunca "se enlouqueciam" eram merecedoras
de desprezo. É curiosa a dubiedade do termo que esses músicos
tomaram emprestados dos bandidos para designar os que não se
drogavam: caretas. Aparentemente, essa palavra - que tradicio-

nalmente significa "máscara" ou "mascarado" - surgiu entre os
malandros como uma maneira jocosa de dizer "cara" (careta é um
diminutivo de cara): de alguém que não tomou nada para mudar a
mente diz-se que está "de cara limpa". Muitas vezes ouvi músicos
dizerem que tiveram que enfrentar essa ou aquela situação "total-
mente de cara". Algumas vezes ouvi quem dissesse: "Eu estava de
cara limpa, de cara, de careta mesmo, caretinha". Assim, careta,
na gíria bandida dos músicos, queria dizer, em princípio, o contrário
de mascarado. Mas seu uso como um depreciativo dos não-usuá-
rios de drogas terminou por trazer de volta algo do antigo valor
semântico, já que drogar-se significava- com sua conotação de

abrir-se para Deus e para a música - desmascarar-se. Os "caretas"
são os burgueses sempre de cara limpa e sempre de máscara.
Em 72 quase tudo era anatemizado como careta. O trocadilho
armado por Rogério com esse termo e o meu nome - Caretano -
me parecia trazer uma saudável distensão, como se aí se iniciasse

um processo de superação dos fanatismos revolucionários e do luto
por suas derrotas, habilitando-nos assim a poder reconhecer suas
vitórias parciais. Não tínhamos atingido o socialismo, não tínhamos
sequer encontrado uma face humana no socialismo existente; tam-
pouco tínhamos entrado na era de Aquarius ou no Reino do Espírito
Santo; não tínhamos superado o Ocidente, não tínhamos extirpado
o racismo e não tínhamos abolido a hipocrisia sexual. Mas as coisas
nunca voltariam a ser como antes."



Extracto (longo, eu sei!) do livro de Caetano Veloso
"Verdade Tropical", dado à estampa no Brasil em Outubro
de 2007, pela editora "Companhia das Letras" e que, num
gesto veloz - o livro ainda estava empacotado nos
armazéns da livraria "Nova Fronteira" -, eu ganhei de
presente dois meses depois, em dia feliz de aniversário.
Deixo aqui também uma música algo rara do Caetano, da-
quelas que não passam na rádio, que não pertencem a
nenhum dos seus discos de originais mas sim a uma
compilação de singles que um japonês apaixonado pela
sua obra, um tal de Jin Nakahara, empreendeu e reuniu
num CD, que eu creio não ser muito conhecido, porventura
nem mesmo no Brasil...

08 agosto, 2007

vamos come(mora)r caetano

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© 2007 (s/ contracapa do cd "Singles" de Caetano Veloso)





Poucas coisas posso dizer com tanta certeza: eu não era
hoje o mesmo se um dia não tivesse, vertiginosamente,
tombado de amores pelo Estrangeiro de Caetano Veloso.
Eu que amara tanto o desespero lugúbre da Joy Division
mas que não conseguira pôr-me a dançar com os passos
seguintes da herdeira New Order, foi com este disco do
mano Caetano, produzido no meio da vanguarda musical
nova-iorquina, que eu acordei para o sabor puro da dança
e do ritmo, que virei a atenção para esse imenso e inesgo-
tável continente sonoro e literário que é a música do Brasil,
que são as músicas dos vários brasis...
Nunca mais larguei esse amor.
Foram infindas as vezes que ouvi esse disco recheado de
princípio a fim de brilhantes composições, algumas mesmo
insuperáveis obras-primas. Poucos discos terei ouvido
mais do que este. Concerteza, apenas o Swordfishtrombones
do Tom Waits, o Searching for Young Soul Rebels dos Dexy's,
o Closer dos meninos tristes de Manchester. Poucos mais.

É óbvio que quase desde criança, como todo o mundo aliás,
também eu amara o leãozinho ou o menino do rio. Ou, mais
tarde, o maravilhoso disco ao vivo com o Chico Buarque.
Mas foi a partir deste disco de 89 que eu caí na real: "este
homem é um génio e eu tenho andado a dormir".
A partir daí, quase como estudioso, segui religiosamente toda
a sua carreira e comprei praticamente todos os seus discos.
Mas, sobretudo, descobri ou redescobri todos os outros au-
tores e cantores, que são - muito para além dos nomes mais
clássicos - inúmeros e inesgotáveis.
Hoje não tenho vergonha ou pudor algum em dizer que não
aguentaria viver sem o bálsamo da música brasileira.
A sério.
Etc...

07 agosto, 2007

na sombra dos livros

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"(...) Ela sentia-se aberta em dois mundos, porque, embora
em pequeno, se produzia o fenómeno de quando se rompem
por um estreito as duas ancas continentais que antes for-
mavam um só mundo.
Agora teria de manter um novo equilíbrio de mulher para se
governar a si mesma. Já nunca mais estaria aglutinada dentro
de si como quando era a fechada e inextensa virgem.
Pegada à terra, sentindo o latir das suas costas contra a
terra dura, havia sentido um fenómeno que cresce em cada
mulher, no momento decisivo, é como toda a natureza, e o
fenómeno fora como o rachar da terra em greta imensa, em
barranco com vórtice, ficando já para sempre a anca direita
muito longe da anca esquerda, de tal modo que se se pu-
sessem a adejar a compasso, o seu adejo seria o de umas
asas muito separadas e longínquas.
Os próprios ossos haviam sido removidos do seu sítio, como
barco que se abre em duas metades ao encalhar. Os íleos ti-
nham-se desconjuntado como cadernos de um livro que se
dobra ao avesso.
Mas gozava no meio de tudo o primeiro prazer de morrer.
Bauziri, rude, surdo, mudo, dentro do recolhimento ensimes-
mado, não via as luzes do céu, mas só os negros declives.
A natureza esperava em vão que irrompesse em beijos; mas
o negro não sabia o que a natureza lhe ditava.

O beijo era desconhecido naquelas regiões. O beijo é uma
descoberta simples, mas que pode ser impossível onde não se
descobriu.
A rapariga, esbelta, saturada, tendo sobre si o fruto de to-
das as suas primaveras, necessitava do beijo; mas o beijo
não podia irromper, porque era desconhecido!

Vítima sem beijos, fazia pena a sua vitimação.
Nada era certeiro nem podia saborear a vítima se estava
ausente o beijo. Ia rebentar como um botão prestes a romper,
e, no entanto, não rebentava na muda refrega, que parecia
esperar pela intervenção dos guardas do bosque.
Aquela seca refrega carecia de amor, porque carecia de
beijos, e o seu anseio era como o dos cães que mostram a
sua gratidão mudos de beijos.

Nem um beijo emudecia o assalto. Ao longe sentia-se que toda
a natureza aguçava os ouvidos, como masculino animal que
pressente a fêmea em gozo.
Sentiam medo, no meio das suas paralisias, de ter excitado o
olfacto por toda a ferocidade do bosque, que pressente o
gozo como um fruto mais para morder, como uma direcção
a seguir por entre os matagais que o desencaminham.

Ainda mordia o lábio saliente de Luma, como uma argola por
onde a submetia por completo. Ainda a agarrava como nadador
que domina a que se presta aos seus ensinamentos de natação.
Depois acalmou-se a cena, descansaram um bocado e levanta-
ram-se como animais que sacodem a terra pegada ao pêlo."



extracto de A Virgem Pintada de Vermelho, uma "falsa
novela negra" do grande, absolutamente grande
Rámon
Gomez de la Serna , um dos meus companheiros dos dias
de férias já lá idos...

06 agosto, 2007

iluminação

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04 agosto, 2007

agosto

um poema do espanhol Eloy Sánchez Rosilio,
traduzido por Joaquim Manuel Magalhães.


Como é possível que transcorra lenta
diante dos meus olhos esta tarde de hoje
e que tão sem olhá-la e sem dizê-la
a deixe partir para todo o sempre?

Nunca mais voltará. Devagar passa
esta tarde do mundo em que é agosto
e na qual estou vivo e nada temo.
Quase não avança, mas vai avançando.

Eu sei bem que é um milagre irrepetível.
E contudo ignoro-a: não se ocupam
dela meus olhos nem o papel recolhe
sua clamorosa luz, seu mar tão plácido.

"Ainda haverá muitas tardes como esta",
pensa o meu erro em tempo de abundância,
porquanto agosto se mostra interminável
e é fácil esbanjar quando se tem.

Assemelho-me aos ricos que dissipam
sua incontornável fortuna a mãos cheias
e um dia despertam e não há nada,
nem uma moeda resta nos seus bolsos.

Sem que me dê conta chegará setembro.
Ir-se-á com seus prodígios o verão
e verei de repente a minha pobreza.
Mas será já muito tarde para tudo.


Ah, como gosto tanto de poesia assim despretensiosa, destas
palavras eivadas de uma simplicidade profunda; de vozes
assim espartanas e desamparadas...

03 agosto, 2007

mas a criança pula e (o mundo) avança

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02 agosto, 2007

sinais apocalípticos

Dias difíceis assolam este nosso mundo. Tempos infernais.
Viver sobre este planeta não parece estar nada seguro (e
eu bem sei que é tão ingénuo formular isto assim).
Momentos de horror no dobrar de cada hora. Cenários de
catástrofe ao virar de cada esquina das nossas vidas.
Aviões que caem sobre as cidades. Pontes que inexplica-
velmente desabam mesmo nos mais próspero países.
Cheias diluvianas. Ondas de calor mortíferas. Incêndios
dantescos. O angustiante degelo das calotes polares.
Bandeiras imperiais no fundo do Ártico. Os conflitos bélicos
intermináveis. Por aí fora.
E, sobretudo, os fascismos e despotismos vários, a medra-
rem insidiosamente um pouco por todo o lado, a crescerem
outra vez como tentadores cogumelos venenosos...

01 agosto, 2007

o sangue da terra

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